O grande desafio do governo Dilma: uma nação, duas sociedades

No dia primeiro de janeiro de 2011 o Brasil inicia uma nova era. Uma mulher, a primeira na história, passará a governar nosso país. Além das barreiras culturais que enfrentará para se firmar, e fazer respeitar, numa sociedade masculina e conservadora, a futura Presidente se defrontará com uma realidade brasileira muito menos favorecida que a do governo anterior.

Lula, em 2003, recebeu um país atrelado às políticas impostas pelo FMI, resultantes do Consenso de Washington, que ao mesmo tempo em que ditavam um trilho justo para nosso governo, serviram para salvar o Brasil de uma pancada maior na crise de 2009.

A conjuntura mundial de 2003 a 2008 era plenamente favorável ao Brasil, e a outros países menos desenvolvidos, devido a fase excelente da economia internacional. Mesmo assim o Brasil não se desenvolveu tanto como apregoa a propaganda do governo que sai.

Quinto grau desenvolvimento da América Latina, em 2010, ficou atrás de países como Uruguai, Paraguai, Argentina e Peru, nos índices de aferição. Enquanto toda a América latina se desenvolveu, e cresceu, 4,7% o Brasil conseguiu chegar a 4,2%.

Mas o que mais chama a atenção como desafio para a próxima gestão, é o grande fosso existente entre as binárias camadas sociais e econômicas, que se constatam em nosso país. E nesse ponto o governo que se encerra pouco fez, além das políticas de pronto socorro contra a fome e a miséria.

Temos uma Nação com duas sociedades coexistindo, com uma distância absurda entre elas. Temos a sociedade dos elevados salários, e ganhos extras de parlamentares e altos funcionários públicos, e a sociedade do salário mínimo e dos corroídos ganhos dos aposentados.

Enquanto a sociedade do andar de cima se contempla com 15 salários, auxílio moradia, telefone, viagens aéreas, telefone, e outras benesses pagas com dinheiros de impostos dos trabalhadores e contribuintes brasileiros, a sociedade do andar de baixo tem que conviver, e sobreviver, com valores dramática e indignamente menores.

A sociedade dos bem aventurados financiados empresários e banqueiros quebrados, diante da sociedade inferior dos jovens que precisam inovar e empreender, mas que encontram absurdas taxas bancárias e juros extorsivos proibitivos para os seus sonhos de independência e inovação.

A dramática situação da sociedade do andar de baixo, em termos de saúde, segurança, educação e mobilidade social, diante das aposentadorias e agregações de privilegiados servidores públicos, que se aposentam com proventos integrais sem nunca terem recolhido sequer um centavo para fundos de previdência.

E tudo saindo do mesmo caixa único do Governo, o qual só cita o \"déficit\" da Previdência, como se culpados fossem os pobres aposentados que recolheram contribuições por toda uma vida de trabalho, mas passam a envelhecer dependendo da pirataria financeira exercida sobre os \"empréstimos consignados\", que só diminuem as suas perspectivas de poupança e felicidade, no que era para ser os \"anos dourados\" de vida.

Professores, dedicados e abnegados formadores de futuros cidadãos, experimentam uma via crucis permanente diante de magros salários, parcos estímulos e baixo reconhecimento governamental e social. Enquanto isso, \"consultores\" ganham fortunas em dinheiro público, em organizações não governamentais mantidas, paradoxalmente, por recursos públicos, que remuneram \"projetos\" e \"grandes sacadas\", que nunca chegam a ser aplicadas para melhorar a realidade da educação, hospitais e atendimento popular dos que mantém a fonte pagadora, tão benevolente e generosa nesses casos, e tão rigorosa ao discutir se o salário mínimo será de R$540,00 ou de R$560,00.

Esse sim será o grande salto a enfrentar, o enorme abismo social a superar, a gigantesca injustiça a reparar, pela nova Presidente que assume. Não lhe será fácil a tarefa. Ela tomará posse num ano em que se esperam juros mais altos para segurar a festa do consumo desenfreado, que pode acelerar a inflação e ameaçar a estabilidade da moeda.

Ela assume num ano em que o mundo rico ainda não superou a crise financeira e no qual a União Européia enfrentará o desafio de manter a zona do euro estável, os Estados Unidos continuarão atacando as causas da corrosão do dólar, e a Ásia enfrentará a crise de crescimento acelerado da China e a situação do Japão.

O Mercosul ainda não bem estruturado e consistente diante de um mundo em mutação, em que o império americano corre o risco de perder seu lugar no pódio para o emergente império Chinês, que ainda não disse a que veio, se para salvar a China do caos ou se dentro de uma estratégia de dominar a economia global utilizando sua misteriosa mão de obra barata.

Nesse quadro é que Dilma terá que acabar com essa \"guerra civil\" não declarada, com essa divisão malvada e frustrante de uma nação com 190 milhões de cidadãos, na qual apenas metade pode chamar-se e considerar-se assim.

Ela terá que enfrentar a crise de um mundo que pode mudar suas relações com o Brasil, criando buracos e indefinições nas parcerias econômicas, no tocante às exportações e importações, com grandes conseqüências para a formação de riqueza, renda e salários no Brasil.

A educação precisa ser valorizada, os professores necessitam de novo status de formação, reciclagem, remuneração e respeito social. A saúde vai ter que passar por cirurgia de emergência, para se estancar a hemorragia de recursos, que consomem 75% do caixa do SUS, com atendimentos decorrentes de doenças provenientes da ausência de uma ação preventiva de saúde pública, como diabetes, pressão arterial elevada, e doenças coronarianas e câncer.

Gasta-se muito com a doença e muito pouco com a cura pela prevenção. Na segurança não mais se poderá atacar somente as emergências em nível policial, pois tudo que se viu até então nos coloca a evidência meridiana de que a prevenção ao crime passa pela inclusão real, com dignidade e justiça, e com as ferramentas integradas da presença do Estado, naqueles bolsões abandonados historicamente para o estado paralelo do crime organizado.

Ou seja, o termo Belindia, que define um Brasil hermafrodita que convive com dois países mutuamente excludentes e diferentes, fruto da fusão jocosa de uma Bélgica rica e desenvolvida, e de uma Índia de castas, pobre e ambivalente, dúbia e conservadora, miserável, e deslumbrante, em riquezas e potencialidades.

Dilma viverá a missão de recriar o Brasil, de recriar e implantar um Brasil, único e indivisível, resultado do nível de consciência de nossa sociedade, que não mais tolera que se brinque de governo \"sério\" e \"competente\" enquanto abriga duas sociedades autofágicas e concorrentes, em que uma vive a saúde e a felicidade, construídas sobre a ruína da outra, relegada, esquecida e \"transparente\" aos olhos dos privilegiados.

Que sua condição de mulher, inteligente, preparada, e corajosa, que representa uma mudança inédita em nossa sociedade, lhe permita exercer a alternatividade e, por isso, desenhar novos caminhos e implantar soluções até então não experimentadas pela política velha.

Danilo Cunha é consultor corporativo e analista político.

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