Recalls: as consequências da produção em massa

Os números e fatos não nos deixam mentir. Somos uma nação apaixonada por carros, como dizia o slogan de uma distribuidora de combustíveis. De acordo com dados da Fenabrave, superamos em agosto último a marca de 400 mil automóveis emplacados, o que projetaria 3,7 milhões de veículos para 2012, atingindo o sexto ano consecutivo de aumento nas vendas – para alegria das montadoras e tristeza dos moradores dos grandes centros.

Um olhar mais crítico levantaria a pobreza do portfólio de produtos oferecidos. Gol, Palio, Celta e Fiesta, lideram o ranking. Modelos ultrapassados tecnologicamente e sob a ótica do ciclo de vida dos produtos: introdução, crescimento, maturidade e declínio. Para não perderem o pedaço do queijo e os lucros decorrentes da venda de itens amortizados, montadoras criam e recriam novas versões e gerações. Uma conta rápida levaria a quase um século, somando-se a idade destes veteranos.

Um fato que me intriga neste cenário é o crescente aumento do número de recalls. No Código de Defesa do Consumidor, artigo 10, § 1°, alerta para esse problema. Só neste ano foram mais de 250 mil chamadas no País, envolvendo praticamente todas as montadoras. Para analisar este fenômeno, cito um artigo divulgado em importante publicação sul-coreana que avalia os riscos da produção global sobre os recalls em massa, como os ocorridos com a montadora Toyota.

A empresa japonesa, criadora da produção enxuta e disseminadora de mantras como redução de estoques e desperdícios, têm sofrido na pele os efeitos dos recalls em massa. Há semanas, divulgou um chamamento de 7,4 milhões de unidades com defeitos em seu sistema de vidros elétricos. Corolla, Camry, RAV4 e outra meia dúzia de modelos, espalhados em diversos países. Outro forte impacto, considerando o mega recall de 2009, envolvendo 8,7 milhões de veículos com problemas nos freios.

O movimento de produção global teve início nos anos 80, quando grandes conglomerados em busca de menores custos de produção e câmbios mais favoráveis, migrou grande parte de suas operações fabris para países em desenvolvimento. De acordo com dados do ministério da economia e comércio exterior japonês de 2004, mais de um terço da produção de veículos estavam fora do País.

Não obstante as reduções de custo, ganhos de escala, lucros crescentes e maior proximidade com os mercados consumidores, tal estratégia se mostrou frágil no longo prazo devido a quatro grandes fatores, classificados em (a) internos: qualidade das fábricas e vazamento de tecnologias e informações e (b) externos: qualidade no fornecimento de peças e fraco poder de negociação, os quais serão comentados de maneira sucinta a seguir.

I – Qualidade das fábricas fora do País de origem: as diferenças físicas, comportamentais e culturais entre matriz e subsidiárias trouxeram dificuldades na implantação de programas de qualidade entre as fábricas. Em uma cultura baseada fortemente em processos, qualidade e sistemas de gestão, não há como abrir exceções ou abrasileirar a maneira pelas quais veículos são produzidos. Pão de queijo e suco de laranja não combina com o rigor oriental.

II – Vazamento de informações: controlar e proteger tecnologias proprietárias e informações confidenciais em terras longínquas tem se mostrado um desafio. Funcionários que migram para a concorrência, além de parceiros detentores de tecnologia podem causar danos graves às matrizes. A Honda teve uma forte queda em suas vendas na China em meados dos anos 90, face ao vazamento de design e tecnologia, copiados por concorrentes locais.

III – Qualidade no fornecimento de peças: já se vai quase um século, desde a introdução do modelo de produção verticalizada por Ford, produzindo internamente as peças e componentes necessárias à produção de um veículo. De lá para cá o modelo de negócios foi remodelado, com as montadoras concentradas em design e marca. Neste cenário, os fornecedores têm um papel crucial. Gerenciá-los, mantendo a qualidade é um grande desafio, potencializado com a distância entre matriz e filiais.

IV – Fraco poder de negociação: a parábola de Davi e Golias já não pode ser utilizada para caracterizar a relação entre montadoras e fornecedoras de autopeças. Com a consolidação do modelo horizontalizado, corporações multinacionais floresceram para atender a crescente demanda, desequilibrando o pêndulo para o lado de Davi. Com a alta concentração as montadoras perderam poder de negociação, diminuindo suas opções enquanto viam subir seus custos.

Analisando os pontos apresentados pelo artigo e a situação atual do Brasil neste mercado, tanto como pólo de inovação e desenvolvimento de produtos globais, quanto como centro de atração de novas montadoras, não me surpreenderá caso o número de recalls em solo brasileiro não diminua nos próximos anos. Creio que a troca valha a pena, caso seja este o preço para deixarmos de comprar os vovôs de mercado. Neste ínterim, sugiro aos apaixonados uma visita ao Salão do Automóvel ou ao GP Brasil de Fórmula 1, onde recall é também chamado de pit stop.

Marcos Morita é mestre em Administração e consultor de negócios.

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