A voz e a garra de Elza Soares pelos caminhos, alguns tortos, do Planeta Fome

Elza Soares

Elza Soares
– Sou mulher, sou negra, sou pobre. Mas sei cantar. Eu quero cantar.

Diante daquele ser humano miúdo, de uma voz potente e rouca, o compositor Ary Barroso, que entre centenas de músicas fez a pérola Aquarela Brasileira e comandava em 1953 o programa Calouros em Desfile, na rádio Cruzeiro do Sul, no Rio de Janeiro, sem saber o que falar apenas murmurou uma pergunta.

– De que Planeta você é?

-Sou do mesmo Planeta do Senhor, Seu Ary. Do Planeta Fome.

Ali estava Elza Soares, aos 22 anos, com o vestido da mãe todo remendado e um corte de cabelo armado e iluminado. Ela cantou a música “Lama” de Paulo Marques e Aylce Chaves. Ganhou a nota máxima.

Da Vila Moça Bonita, hoje Vila Vintém, onde nasceu e viveu seguiu sempre adiante mesmo pelos caminhos tortos, no Planeta Fome. As dificuldades e as tragédias chegavam até ela em carretas. Aos 12 anos foi obrigada pelo seu pai a se casar com um homem 10 anos mais velho que ela, de nome Alaúde Soares, do qual carregou para sempre o seu sobrenome. Tiveram juntos 3 filhos. Casal de pobres, viviam na favela numa miséria total. Destino cruel: dois filhos morreram de fome.

A perda dos filhos e a morte do marido foram precoces, tudo em pouco tempo. Ainda com lágrimas nos olhos, recebeu o que considerou o maior presente da sua vida, uma dádiva de Deus: uma música para cantar do gaúcho Lupicínio Rodrigues, “Se acaso você chegasse”.  Com essa música conseguiu se reerguer na vida.

Foi ainda com a sua voz  e esta música, no início dos anos 60, pelos caminhos tortos do Planeta Fome, que se aproximou de um homem, de pernas também tortas, mas dribles surpreendentes e capaz de fazer gols inimagináveis: o mané Garrincha. Foi amor à primeira vista, uma arrebatada paixão entre eles. 

Garrincha jogou como ninguém na Copa do Mundo de 1962, no Chile. Ele é o maior merecedor pelo título de bicampeão e dedicou essa Copa para ela, que acompanhou os jogos da arquibancada dos estádios do Chile. Pela decisão de viver com Garrincha ela pagou um alto preço. Foi rejeitada por um bom tempo por toda a sociedade brasileira. Por ser uma mulher negra e por “tirar” Garrincha da família dele.

Pelos caminhos tortos que Garrincha decidiu seguir, de paradas seguidas pelos pontos de bebidas, Elza Soares foi mais que uma amante, uma mulher. Ela cuidava dele como se fosse um filho. “Ela colocava os pés dele numa bacia de água. Beijava seus pés”, e segundo ela, os pés de um príncipe, relatou o historiador Rui Castro no livro Estrela Solitária.  

Ela nunca baixou a cabeça pelos caminhos, mesmo tortos, no Planeta Fome. Defendia as mulheres e em especial os gays. “Eles sempre me ajudaram”, reconhecia ela. Com mais veemência sempre comprava briga para defender a sua raça.  “A carne preta é a carne mais barata do mercado, bradava numa de suas músicas.

Não fugia de posições políticas, sempre a favor da democracia. Ficou mal vista por militares da época ao fazer um jingle para o candidato a vice presidente da República João Goulart ( entre 1956 e 1961). Em 1970 teve sua casa metralhada e foi morar na Itália.

O grande impulso na sua carreira ocorreu em 1999 ao receber o  titulo de “A voz do milênio”, concedido pela Rádio BBC, de Londres. Já o trabalho artístico mais expressivo veio rem 2015ao lançar uma coleção de músicas inéditas com nome “A mulher do fim do mundo”.

Nos últimos anos voltava ao caminho da origem com a coleção de música para lembrar do “Planeta Fome”, esse espaço que aumenta de tamanho no mundo todo nos últimos anos de pandemia. No dia 21 de janeiro, aos 91 anos, deitou na sua cama, dormiu e morreu, no mesmo dia que Garrincha morreu, em 1983. Ela sempre dizia que sonhava muitas vezes com ele, o grande amor da sua vida. Pelos sublimes caminhos do universo  devem agora estar juntos.

Facebook
Twitter
LinkedIn