Na pandemia, o maior e invisível abismo social da fome

A empregada doméstica Maria Dolores da Silva, demitida logo no início da pandemia, sem emprego desde essa época, deixou a favela onde mora com dois filhos pequenos e veio para a praça pública, perto do centro de São Paulo. No canto da praça, ergueu uma lona preta para abrigar os filhos do sol e da chuva. Fica ali, o dia inteiro. Acompanha os carros que passam diante dela. A maioria passa em alta velocidade, sem ver a lona preta, ela e os filhos pequenos. Volta e meia um carro freia e desce uma pessoa que vem em sua direção. Deixa peças de roupas e comida.

Maria Dolores está hoje de um lado de toda a população brasileira. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, a partir do início da pandemia, em março de 2020, feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutritiva (Rede Penssan), indica que já nos últimos meses do ano passado 19 milhões de brasileiros passavam fome.

Essa mesma sondagem estimou que 55,2% dos lares brasileiros ou 116,8 milhões de pessoas, que somam nada menos do que a metade da população do país, convivem com algum grau de insegurança alimentar desde o início da pandemia. De acordo com os pesquisadores, esses números da fome no Brasil representam o dobro dos números registrados no último levantamento realizado em 2009.

Neste atual e amplo mapa da fome no Brasil, as crianças certamente são as mais prejudicadas. Com a transferência das aulas para o espaço virtual, muitas crianças perderam o local e onde podiam fazer a única refeição nutritiva do dia.

A última pesquisa alimentar também mostra que a atual e agravada fome no Brasil pela pandemia tem um rosto, cor de pele e escolaridade. No lar brasileiro, dirigido por uma mulher, de cor negra ou parda e de baixo nível de escolaridade, a fome é ainda mais amarga.

Com mais de 14 milhões de desempregados, resultado em grande parte pela pandemia que obrigou o fechamento de um número expressivo de empresas, o país precisa de urgentes programas de apoio, em especial para a população de baixa renda. O governo já fez auxílios emergenciais, de 600 a 150 reais por mês, e muitas empresas privadas e redes sociais se empenham em diferentes ações para reduzir os impactos da fome, mas ainda não suficientes.

Maria Dolores da Silva está na praça pública, embaixo de uma lona preta, com seus filhos, diante de olhos de todos que passam por aquele espaço público.

“Aqui pelo menos não sou invisível como sou lá na favela. Sempre alguém para e deixa alguma coisa para mim e para os meus filhos.”

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