O “Baú dos espantos” de Mário Quintana e o “Baú da pandemia” no Brasil

Mário Quintana pode ser lembrado como o mais completo poeta brasileiro. Foi um ser poeta, um poeta em pessoa. Viveu para a poesia, se alimentava da poesia. Acordava e dormia com o borbulhar das palavras na sua cabeça em busca de formatos de poemas. Escreveu 21 livros de poemas, participou em mais de 20 antologias e traduziu 150 livros de literatura universal, entre eles “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust.

Esse gaúcho de Alegrete morou, sozinho, os 12 últimos anos da sua vida no Hotel City, no centro de Porto Alegre, hoje uma casa de cultura que estampa o seu nome. Morreu no dia 5 de maio de 1994. Nunca casou. Nunca teve filhos. Mas namorou muito, com muitas mulheres, mas só de forma platônica. Entre elas a que mais gostava era Bruna Lombardi, que fez campanha para ele ser chamado para a Academia Brasileira de Letras. Mas os imortais não o chamaram. “Eles passarão. Eu passarinho”, se justificou em poema para a Bruna.

Gostava de caminhar pela Rua da Praia para ver no alto os retalhos do céu entre os prédios. Se detinha na Praça da Alfândega. Quase todos os dias sentava num dos bancos da praça e ali observava o vento a se contorcer entre as árvores e espiava os passarinhos, sempre os passarinhos.

Muitas vezes era cobrado por seus poemas só conter as coisas boas e belas da vida, sempre recheadas de saudades, de boas lembranças da sua infância. Em 1986, lançou um livro que chamou muita atenção pelo título curioso de “Baú dos espantos”, com 99 poemas inéditos.

Nos dias de hoje, o grande baú de verdadeiros espantos, nada líricos, que ainda está sendo cheio e logo será aberto e que certamente deixaria o próprio poeta boquiaberto e assustado, é o da pandemia e dos descaminhos para evitar tantas mortes de brasileiros.

O primeiro espanto da pandemia no Brasil está no número de brasileiros que ficaram para trás.  Nada menos de 520.189 mortes registradas até o dia 1 de julho de 2021.

Que espanto é esse em saber que entre 400 a 600 milhões de vacinas foram negociadas para o Ministério da Saúde pelo cabo da polícia mineira, Luiz Paulo Dominghetti, e pelo reverendo evangélico Amilton Gomes de Paula. Só o cabo da polícia receberia R$ 60 milhões. Isso é mesmo um grande espanto.

Como não se espantar também pelos desvios de dinheiro de governadores, prefeitos e outros políticos, técnicos que compraram respiradores, remédios e outros materiais para hospitais que nunca apareceram, enquanto as mortes se multiplicavam em todo o país.

Como não se espantar também quando a principal autoridade política do país, o presidente da República Jair Bolsonaro, mostra na televisão a caixa de um remédio e passa a receita para toda a população, sem nenhuma comprovação científica e que poderia ser mais indicado tomar um chá de maçã e dar dois pulinhos. O pior: perdeu tempo e não se apressou a comprar vacinas direto das indústrias farmacêuticas, sem atravessadores pelo meio.

No legítimo “Baú de espantos”, Mário Quintana que era considerado “o poeta das coisas simples” respondeu aos seus críticos com um singelo poema que hoje poderia sintetizar muito bem o momento que vive o Brasil:

“Querias que eu falasse de poesia um pouco mais

e desprezasse o cotidiano atroz.

Querias era ouvir o som da minha voz

e não um eco apenas deste mundo louco”.

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