O que é a China hoje e o que tem para nos ensinar

A visão atual do especialista Henry Quaresma, um profundo conhecedor do país asiático, e o comportamento que aconselha para o Brasil daqui para frente no mercado internacional

Por Acari Amorim

 

Henry Uliano Quaresma é CEO da Brasil Business Partners e membro de conselhos de empresas e entidades empresariais. Foi Diretor Executivo na Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), onde participou ou coordenou mais de 90 missões empresariais internacionais em mais de 50 países. Atuou profissionalmente em universidades como professor, em indústrias e governo. É engenheiro, possui MBA em Administração Global pela Universidade Independente de Lisboa, especialização em Marketing pela FGV e concluiu Programas Executivos em Estratégia e Gestão pela Wharton School (EUA) e pela INSEAD (França).
É autor de artigos e livros, destacando-se o livro “O Fator China: Oportunidades e Desafios” (2024), obra consolidada como referência na área empresarial, além dos e-books Internacionalização Acelerada (2025) e Inovação na China: Do Copiar ao Criar (2025).

 

EMPREENDEDOR – Qual foi o impulso, o ponto de virada da China de passar do “copiar” para “criar” novos produtos, com tecnologia e inovação, como faz hoje com o carro elétrico?

HENRY QUARESMA – O ponto de virada da China ocorreu quando o país deixou de ser apenas a “fábrica do mundo” e passou a investir de forma consistente em ciência, tecnologia e inovação. A partir dos anos 2000, o governo estabeleceu planos estratégicos de longo prazo, como o “Made in China 2025”, que definiu metas claras para a liderança em setores estratégicos: veículos elétricos, inteligência artificial, telecomunicações, biotecnologia e energia renovável.

Atualmente, a China destina mais de US$ 600 bilhões por ano em pesquisa e desenvolvimento, o equivalente a 2,6% do PIB, e já ultrapassou os Estados Unidos em número de patentes registradas — mais de 1,5 milhão somente em 2023. O carro elétrico tornou-se símbolo dessa transformação: a BYD superou a  Tesla em vendas globais, enquanto empresas como a CATL dominam mais de 35% do mercado mundial de baterias. Essa evolução mostra que o país não apenas cria tecnologia, mas
passou a ditar padrões globais.

Outro fator decisivo foi o investimento na formação de capital humano. A China entendeu que não haveria inovação sem mão de obra altamente qualificada. Hoje, mais de 1,3 milhão de engenheiros se formam anualmente, abastecendo empresas, centros de pesquisa e startups com conhecimento técnico em larga escala. Paralelamente, milhões de estudantes foram enviados para universidades de excelência nos Estados Unidos, Europa e Japão, retornando com bagagem científica e visão global.

Combinada a incentivos estatais para o empreendedorismo, essa estratégia permitiu que, em poucas décadas, a China se consolidasse como berço de inovações disruptivas, liderando segmentos como veículos elétricos, telecomunicações e inteligência artificial.

 

“Se não superarmos o preconceito e não enxergarmos a China como um polo de conhecimento e inovação, corremos o risco de ficarmos a margem da corrida tecnológica global”

 

A China hoje tem o maior número de robôs instalados nas indústrias em todo o mundo e com uma carga diária de trabalho conhecida por 9/9/6 (das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias por semana). Na corrida da inteligência artificial e robótica, quem pode competir com eles?
Hoje, a China concentra metade de todos os robôs industriais do mundo. Esse avanço não se deve apenas ao volume de produção, mas à capacidade de integrar robótica com 5G, big data e inteligência artificial em fábricas inteligentes de grande escala. O que impressiona é a velocidade do processo e a forma como governo, empresas e centros de pesquisa atuam de maneira coordenada.

Os Estados Unidos ainda disputam a liderança, apoiados na força de suas Big Techs e no ecossistema de inovação do Vale do Silício. A União Europeia tenta ocupar espaço em áreas específicas, como robótica colaborativa e automação de precisão. Mas a grande disputa tecnológica está concentrada entre China e EUA.

A vantagem chinesa está na escala do mercado interno, na rapidez de implementação e no apoio estatal maciço. O país cria, testa e aplica tecnologia em ritmo acelerado, transformando pesquisa em produto de forma quase imediata — algo difícil de ser replicado por outros países. Em 2024, foram vendidas mais de 302 mil unidades de robôs industriais, consolidando a liderança chinesa pelo 12º ano consecutivo. Esses equipamentos estão presentes sobretudo nos setores automotivo, eletrônico e de máquinas, onde a automação já se tornou essencial.

O crescimento é sustentado por políticas públicas claras. Apenas nos primeiros meses de 2025, foram registrados mais de 114 novos negócios ligados ao setor, movimentando cerca de 23 bilhões de yuans. Shenzhen criou um fundo de 10 bilhões de yuans para incentivar startups, Pequim oferece subsídios de até 30 milhões de yuans por empresa, e o governo central discute a formação de um fundo nacional de 1 trilhão de yuans (cerca de 137 bilhões de dólares) voltado a inteligência artificial e robótica.

A inovação acompanha esse movimento. A China já responde por dois terços das patentes de robótica válidas no mundo, superando 190 mil registros. Isso confirma a mudança de perfil: de mera fabricante em larga escala para desenvolvedora de tecnologia de ponta.

Um dos avanços mais visíveis está nos robôs humanoides. Startups e grandes empresas já produzem em escala: a AgiBot fabricou quase mil unidades em Xangai; a Unitree lançou o modelo G1, vendido a partir de 16 mil dólares; a EngineAI apresentou robôs capazes de correr, saltar e executar acrobacias; e a Fourier Intelligence desenvolveu o GR-1, voltado para saúde e reabilitação. Esses humanoides começam a se expandir para escolas, hospitais e serviços de atendimento, chegando até a participar de cerimônias públicas, como ocorreu em 2025 em uma formatura escolar.

A China também transformou a robótica em vitrine global. Pequim sediou as primeiras Olimpíadas Mundiais de Robôs  Humanoides, reunindo mais de 500 competidores em modalidades que incluíram corrida, futebol e dança. Apesar das limitações técnicas ainda existentes, o evento reforçou a intenção chinesa de liderar o setor no cenário internacional.

As aplicações práticas já se multiplicam. Na saúde, robôs atuam em reabilitação e no cuidado de idosos. No setor de serviços, humanoides trabalham como recepcionistas e guias em espaços públicos. Na segurança, drones terrestres e robôs de patrulha reforçam a presença tecnológica.

Mais do que ganhos industriais, a estratégia chinesa projeta influência global. Ao investir pesado e acelerar a aplicação dessas tecnologias, o país busca definir padrões internacionais e garantir posição de liderança na economia digital. A tendência é que robôs chineses estejam cada vez mais presentes não apenas em fábricas, mas também em hospitais, escolas, aeroportos e residências.

Um alerta: sem uma política industrial de longo prazo, com escala, integração e visão estratégica, O Brasil corre o risco de permanecer apenas como consumidores das tecnologias chinesas. O país tem empresas inovadoras e capacidade técnica, mas precisa transformar esse potencial em resultados consistentes para não ser apenas espectador na corrida global pela robótica.

 

O que você considera que foi determinante para o fato da China ter retirado da miséria nas últimas décadas mais de 800 milhões de pessoas?
O que fez a diferença foi uma combinação rara de crescimento econômico acelerado, planejamento estratégico de longo prazo e políticas públicas pragmáticas. A criação das Zonas Econômicas Especiais, nos anos 1980 — com Shenzhen como exemplo mais emblemático — abriu as portas para o investimento estrangeiro e para uma industrialização em grande escala, transformando cidades inteiras em polos produtivos e exportadores.

Paralelamente, o país promoveu investimentos maciços em infraestrutura: rodovias, ferrovias, portos, energia, telecomunicações e, mais recentemente, conectividade digital.
Essa base não apenas sustentou a expansão econômica, como também integrou regiões antes isoladas ao circuito de desenvolvimento, permitindo que o crescimento alcançasse tanto áreas urbanas quanto zonas rurais.

Outro pilar decisivo foi a formação de capital humano, como já destaquei em outra resposta. A China entendeu cedo que não há inovação nem competitividade sem gente qualificada. Investiu pesadamente em educação técnica e científica, formando mais profissionais para sustentar a transição de uma economia agrícola para uma potência tecnológica.

Também foram adotadas políticas públicas estruturantes voltadas à atração de investimentos e ao estímulo da atividade empresarial em diversas regiões, inclusive com incentivos para o surgimento de novos negócios fora dos grandes centros.

O resultado desse conjunto de ações é histórico: em apenas quatro décadas, mais de 800 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema, algo sem paralelo na história moderna. Mais do que números, esse avanço mostra a capacidade da China de planejar a longo prazo e executar com disciplina, o que segue sendo uma de suas maiores vantagens competitivas no cenário global.

O maior investimento que a China faz em todo o país no momento é em diferentes fontes de energia.

Qual é a maior preocupação do país neste aspecto?

A China tornou-se a maior investidora mundial em energia limpa. Hoje responde por mais de 60% da capacidade solar instalada no planeta, além de dominar praticamente toda a cadeia de suprimentos de painéis fotovoltaicos e baterias de lítio. Avança rapidamente também em energia eólica, no hidrogênio verde e na construção de usinas nucleares de nova geração, consolidando uma matriz mais diversificada.

O grande desafio, porém, é a dependência histórica do carvão, que ainda representa cerca de 60% da matriz energética chinesa. O dilema é claro: como manter o crescimento econômico estável — base da competitividade industrial — e, ao mesmo tempo, reduzir as emissões e os impactos ambientais?

A resposta chinesa tem sido diversificação e segurança energética. O país está modernizando sua rede elétrica, investindo em armazenamento em larga escala e ampliando fontes renováveis, sempre com a lógica de não depender de ninguém para sustentar seu desenvolvimento. A energia, afinal, é tratada como questão de soberania nacional e como coração da indústria e da inovação tecnológica.

O preconceito contra a China é ainda muito grande. Poucas empresas do Brasil têm um pé na China. É possível dizer também que ninguém sonha no Brasil em estudar na China, ao contrário de como ocorre em relação às universidades americanas. Por que isso ocorre até hoje?

Isso acontece porque ainda prevalece no Brasil uma visão fortemente ocidentalizada sobre inovação, prestígio e conhecimento. Para a maioria, estudar no exterior continua sendo sinônimo de Harvard, Stanford ou Oxford, mas dificilmente se fala em Tsinghua ou Universidade de Pequim, que hoje figuram entre as 20 melhores do mundo em rankings internacionais.

Outro ponto é a barreira cultural e linguística. O inglês se consolidou como idioma global dos negócios e da ciência, enquanto o mandarim ainda é visto como difícil e distante da nossa realidade. Além disso, o noticiário internacional, em grande parte influenciado por narrativas ocidentais, reforça uma imagem negativa da China, o que afasta estudantes e empresários brasileiros.

O resultado é a perda de oportunidades concretas. Enquanto mais de 300 mil estudantes africanos estão hoje matriculados em universidades chinesas, o número de brasileiros é insignificante. Se não superarmos o preconceito e não enxergarmos a China como polo de conhecimento e inovação, corremos o risco de ficar à margem da corrida tecnológica global.

Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Você acredita na manutenção e no crescimento dessa parceria?

Sem dúvida.

 

“Hoje, 35% das exportações brasileiras vão para a China, principalmente soja, minério de ferro e carne. Mas o futuro não pode se limitar a commodities. O próximo passo é transformar essa relação em algo mais sofisticado, com parcerias em inovação, energia renovável, tecnologia digital, saúde e manufatura avançada.”

 

A manutenção é certa — a China precisa de alimentos e energia, e o Brasil é um fornecedor estratégico. Mas o crescimento depende de nós: precisamos sair da dependência de produtos básicos e avançar para integração produtiva e tecnológica.

 

O Brasil historicamente busca negociar com todos os países. Mas no agravamento do conflito atual entre a China e os Estados Unidos, o Brasil terá de optar por um ou outro país. O que você aconselharia?

O maior erro do Brasil seria alinhar-se incondicionalmente a um dos lados. O cenário atual exige pragmatismo estratégico. Os Estados Unidos seguem sendo referência em tecnologia de ponta, defesa, investimentos financeiros e inovação digital. Já a China é o nosso maior parceiro comercial, comprando grande parte das commodities brasileiras e, ao mesmo tempo, liderando avanços industriais, energéticos e em infraestrutura.

O caminho inteligente não é escolher, mas diversificar. O Brasil precisa se posicionar como um ator independente, capaz  de dialogar e gerar confiança tanto em Washington quanto em Pequim. Isso significa construir políticas de Estado que reforcem a autonomia nacional, ampliem as exportações, atraiam investimentos de ambos os polos e protejam os interesses estratégicos do país.

Mais do que nunca, podemos transformar essa disputa em oportunidade. O Brasil tem condições de se colocar como uma ponte entre Oriente e Ocidente, um mediador respeitado no tabuleiro global. Se soubermos jogar com habilidade, poderemos atrair tecnologia americana, captar investimentos chineses em infraestrutura e indústria, e ao mesmo tempo consolidar uma imagem de nação confiável e equilibrada.

Em vez de escolher um lado, o Brasil deve escolher a si mesmo – e usar essa posição singular para crescer e fortalecer sua soberania.

 

“O caminho inteligente não é escolher, mas diversificar. O Brasil precisa se posicionar como um ator independente, capaz de dialogar e gerar confiança, tanto em Washington quanto em Pequim. Em vez de escolher um lado, o Brasil deve escolher a si mesmo – e usar essa posição singular para crescer e fortalecer a sua soberania”

 

HENRY QUARESMA
Cidade natal: Tubarão – SC
Idade: 63 anos
Formação: Graduado em Engenharia com MBA em Administração Global, além e especialização nas áreas de Comércio Internacional
Cargo atual: CEO na Brasil Business Partners

 

 

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