A gripezinha, 200 mil brasileiros mortos e a vida continua

No palco a céu aberto de Brasília, apenas com o isolamento de um muro cinza de baixa altura, diante dos celulares e microfones de seguidores e admiradores, o presidente Jair Bolsonaro no dia 20 de março do ano passado, depois do terceiro dia do registro da primeira morte no Rio de Janeiro pela pandemia, que já se alastrava pelo mundo, desdenhou do vírus.

– Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, tá ok?

Já no dia 30 de março, também ainda na fase inicial da pandemia, fez uma importante pergunta e ele mesmo deu a resposta:

– Vai morrer gente? Vai morrer gente.

No dia 2 de maio, no mesmo palco de Brasília separado pelo deprimente muro, o presidente da República Jair Bolsonaro fez uma declaração ainda mais reveladora:

– Todos nós vamos morrer um dia.

Dia 9 de maio, um sábado de sol em Brasília, foi noite durante todo o dia no país. Neste dia o Brasil somou mais de 10 mil mortes. Por ser cada morte  uma pessoa é preciso indicar o número exato: 10.656 .  Esse dia, o presidente Jair Bolsonaro tirou para passear de jet ski, no Lago Paranoá, em Brasília. Para esse mesmo final de semana, Bolsonaro anunciou que faria um churrasco para mais de 150 pessoas.  Um dia antes esclareceu que era apenas uma “fake news”.

Depois do passeio de mais de 1 hora ao sol no lago Paranoá, o presidente encostou sua lancha motorizada e deu mais uma declaração bombástica:

– O Brasil vive uma neurose com a pandemia.

Depois de 100 dias da pandemia o Brasil enterrou 55 mil pessoas. Enterrar, com toda a dor que envolve essa palavra, não é o verbo mais apropriado para indicar essa tragédia. Para muitas pessoas essa dor não tem palavras, não tem tamanho capaz de dimensionar. Muitas pessoas foram enterradas em estreitas valas comuns, sem a presença do pai, da mãe, dos irmãos, dos tios, sem ninguém por perto.

Para avistar 55 mil pessoas é preciso ter em frente cidades inteiras como o famoso balneário catarinense Camboriú, a Cruz Alta do inesquecível escritor Érico Veríssimo, Vinhedo em São Paulo ou Senhor do Bom Fim na Bahia.  Essas cidades, pelo Censo de 2010, tinham cerca de 55 mil pessoas. Então, uma dessas cidades, em 100 dias,  simplesmente desapareceu do mapa brasileiro devido ao coronavírus.

No dia 25 de junho, quando o coronavirus  marcou 100 dias de circulação por todo o país,  o presidente Bolsonaro, numa live, ao lado do ministro da Fazenda Paulo Guedes, prestou uma homenagem para as vítimas.

– Queremos prestar uma homenagem aos que se foram vítimas do coronavírus.

Chamou para seu lado na época o presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, hoje ministro do Turismo  e, nas horas vagas, é também um sanfoneiro. Ordenou a ele.

– Toca aí a Ave Maria, Gilson.

Na véspera de ver no painel a contagem de 200 mil mortes pelo coronavírus e 8 milhões de brasileiros contaminados, ainda sem um plano nacional de vacinação definido, sem mesmo com data certa para dar o início  e sem mesmo a garantia de um número suficiente de seringas e agulhas para realizar essa imunização, o presidente Bolsonaro faz uma declaração ainda mais surpreendente, já neste ano, dia 5 de janeiro.

– O país está quebrado.

Dois dias depois, no dia 7 de janeiro, nesta quinta-feira, o Brasil bateu 200.163. É preciso sempre mostrar até o último número pois cada  um número representa uma vida perdida, a vida de um brasileiro. Para se ter uma ideia da perda de 200  mil pessoas se teria que somar 1.005 acidentes de avião igual aquele que correu em 2007 perto do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, com uma aeronave da TAM.  Ou somar 740 vezes o número de mortos no rompimento da Barragem de Brumadinho que ocorreu no dia 25 de novembro de 2019.

Jair Bolsonaro não se considera um genocida e nem se responsabiliza pelas mortes do coronavírus. Mas é cúmplice sim pelas mortes que ocorreram até agora e pelas que ainda vão ocorrer, por  negar a pandemia, por negar também a eficácia das vacinas e  pela morosidade em todo esse processo de imunização. No momento que 40 países do mundo já começaram a vacinação, o Brasil ainda discute um plano que, por falta de liderança nacional, está  amarado por interesses políticos e ideologias. O país desqualifica toda uma  experiência e uma referência mundial em vacinação de mais de 50 anos, num trabalho árduo, sério, em especial do Butantan e da Fiocruz.

Pelo lado da economia, essa demora na vacinação tende a aumentar o número de empresas que fecharam suas portas desde o início da pandemia. O desemprego já bateu  em 14, 1 milhões de brasileiros. O governo, por sua vez,  já teve que desembolsar, em auxílios de emergência e compra de equipamentos e abertura de leitos hospitalares, mais de R$ 615 bilhões.

Em tempo. No dia que Brasil soma 200.163 mortes o presidente do República não deixa de fazer o seu registro:

– Lamentamos as mortes. A vida continua.

Facebook
Twitter
LinkedIn