Você já ouviu falar na expressão inglesa “burn a bridge” (“queimar uma ponte”)? Significa que, pela nossa própria escolha, destruímos a única possibilidade de retroceder e eliminamos o caminho pelo qual viemos, não havendo mais chance de volta. Só poderemos seguir em frente.
Em sua apresentação no Day1, o empreendedor José Renato Hopf falou sobre “caminhos sem volta”, ainda que utilizando outra metáfora: a da navegação. Mas o criador da GetNet não fez coro à maioria, que associa a condução de uma empresa ao comando de uma embarcação. Ele foi na contramão: para além do famoso “todo mundo no mesmo barco”, Zé Renato acredita que, quando o desafio é muito grande, o time todo deve “ir para a ilha e queimar o barco, estar dedicado de corpo e alma para que aquilo dê certo”.
“TUDO O QUE EU CONSTRUÍ NA MINHA VIDA, PESSOAL E PROFISSIONAL, FOI COM MUITAS PESSOAS.”
“A tecnologia vai mudar as empresas, vai mudar o mundo”
Não, Zé Renato não é piromaníaco; mas curioso, sim. Desde criança, ele procurava saber como as coisas funcionavam. E a grande paixão era a História: “Eu lia tudo que caía na minha mão sobre História do mundo, sobre geopolítica”.
Esse fascínio fazia o garoto Zé sonhar com as relações internacionais. E um primeiro desejo foi o de lançar-se ao mar da diplomacia: “Ficava imaginando os diplomatas negociando na ONU, tentando resolver aqueles conflitos entre países”.
Só que, já jovem, Zé Renato também queria a independência. E percebeu que a carreira de diplomata talvez demorasse muito a lhe proporcionar isso. Então, começou a prestar atenção ao mundo corporativo, à lógica das empresas.
O primeiro vislumbre da ilha
A independência veio, em parte, quando Zé Renato estava para concluir o colégio. Os pais se mudaram para o Rio, ele ficou em Porto Alegre e foi morar com o irmão mais velho — uma mudança que, hoje, ele sabe ter sido fundamental para o empreendedor que viria a se tornar.
“Meu irmão estava estudando processamento de dados e comecei a me interessar pelas ideias por trás da informática”. Aquilo era muito novo na época, mas foi o bastante para que o jovem Zé tivesse um primeiro vislumbre da ilha para a qual partiria. “Um dia pensei comigo: ‘taí, é para aí que o mundo vai. A tecnologia vai mudar as empresas”.
Por outro lado, ele também era apressado, queria cortar caminho. Então, na hora do vestibular, prestou para dois cursos: administração e informática. Como ele pressentia que uma grande mudança iria ocorrer “queria estar lá dentro”.
Caminho do meio
Passado o calor do momento, logo bateu a consciência. Ele começou a ter dúvidas sobre conseguir dar conta dos dois cursos. Foi quando descobriu que tinha sido aprovado na Academia da Força Aérea, e resolveu ir para lá.
A escolha se deveu, em grande parte, à influência do pai, que era militar. “Eu tinha uma admiração enorme por ele, os valores sempre foram muito importantes.”
Mas a carreira militar durou pouco — sentia que ali não conseguia criar algo realmente novo. O fato é que aquela outra ilha permanecia no horizonte, convidativa. Sendo assim, Zé Renato voltou à universidade para um curso apenas: administração com ênfase em análise de sistemas.
“Eu era uma esponja”
Aprovado no curso, ele foi morar sozinho. Matriculou-se à noite para poder trabalhar de dia e, por meio de concurso, entrou no Banrisul, o banco público do Rio Grande do Sul. Na época, tinha 19 anos. Enfim conquistara a independência.
No banco, Zé Renato escolheu a área de automação bancária.
“FOI QUANDO TIVE OS MEUS PRIMEIROS APRENDIZADOS PROFISSIONAIS IMPORTANTES. EU ERA UMA ESPONJA, PRESTAVA ATENÇÃO, OUVIA MUITO, FUI APRENDENDO TODO O NEGÓCIO DO BANCO”.
“Nunca ande olhando para o chão”
Nesse processo, ele travou contato com profissionais que o inspiram até hoje, e que o motivaram a ser mais arrojado. Um deles foi Luís Porto Alegre Furtado, vindo da IBM para tocar a área de automação do banco. Os métodos inovadores do executivo impressionavam o jovem Zé Renato:
“Na época, ele realizava avaliação 360 graus, uma coisa avançada, que nem hoje as pessoas fazem ainda. Então aprendi muito. Lembro que ele dizia: ‘Nunca ande olhando para baixo. tem que olhar sempre para a frente, mirando o que você deve fazer’. Isso me ajudou. Eu tinha 21 para 22 anos quando já era responsável por toda a área de automação do banco.”
Outra figura inspiradora para Zé Renato foi Jorge Krug, com quem aprendeu tudo sobre o mercado que exploraria em breve: o de cartões. Por causa dele, o empreendedor teve a oportunidade de ir a um evento sobre tecnologia bancária em Nova York, na qual viu uma palestra que mudaria sua visão sobre para onde o mercado, e o mundo, estavam indo.
As profecias do protótipo de maluco
Um dos palestrantes, que trabalhava com pesquisa de tendências da IBM, tinha um visual bem diferente: “Imagina o case clássico de gênio-maluco: cabelo branco todo descabelado, barbona, roupa meio rasgada”.
O PALESTRANTE COMEÇOU A FALAR SOBRE COMO AS COISAS MUDARIAM RÁPIDO E COMO O MUNDO SERIA HIPERCONECTADO. EM 1998, SEM USAR ESSES NOMES, FALOU DE CONCEITOS COMO O DO SMARTPHONE E A DA COMPUTAÇÃO EM NUVEM.
Guarde a grande ideia para a pessoa certa
O curioso é que, enquanto aquilo fazia todo sentido para Zé, era motivo de deboche para outros presentes. “Tinha dois diretores de bancos concorrentes e eles estavam debochando do cara. Aquilo me fez muito mal. Primeiro porque você deve ter respeito pelas pessoas, ser humilde, aprender, e ao mesmo tempo fiquei irritado e comecei a discutir com eles, mas desisti”, conta ele.
“AÍ DEPOIS UM AMIGO ME DISSE: ‘SE O TEU CONCORRENTE ESTÁ ENGANADO, NÃO O DISTRAIA’. E COMECEI A USAR ISSO A MINHA VIDA INTEIRA”
Só que esse deboche ensinou algo muito importante para Zé Renato. Ele percebeu que, de fato, não era fácil traduzir aquela visão para outras pessoas. “Aprendi então que, quando sua ideia é muito inovadora, você tem que falar para a pessoa certa, no tempo certo. Não adianta tentar ficar convencendo todo mundo”.
A oportunidade do Plano Real
A inquietação de Zé Renato chamava a atenção dos gestores mais experientes: “Eles me recomendavam calma, mas é difícil ter calma quando você tem tanta certeza de uma ideia”.
Ele queria chegar logo à ilha. Mas, para isso, precisava de uma estratégia, uma oportunidade. E ela veio com o surgimento do Plano Real, que obrigou o Banrisul a mudar radicalmente a operação para virar um banco de negócios de modo a ganhar dinheiro. Naquele momento, Zé Renato passou a se dedicar a um projeto de Banco Eletrônico, que incluía a criação de um cartão multifuncional. Nenhum outro banco tinha isso.
No entanto, o acaso interveio: a diretoria do banco foi trocada. As lideranças foram substituídas — inclusive os “mentores” Furtado e Krug –, e o projeto foi sendo deixado de lado.
Começando a preparar a embarcação
Chegara a hora de tomar a primeira grande decisão: abrir uma empresa. Zé Renato montou um negócio de automação para pontos comerciais. Naquele momento, não fora uma escolha tão estratégica assim. “Como eu era da ‘área de informática’, meu sogro me indicou para um amigo que estava com problema na empresa dele”.
O parente havia encomendado um sistema de controle comercial e a pessoa que o desenvolveu tinha saído; assim, precisava de alguém para fazer a manutenção. E, caso Zé topasse, poderia usar o sistema onde quisesse.
“De repente eu tinha uma empresa, um sistema, tudo sem investir um real. Chamei três amigos para vir comigo e a gente trabalhava à noite, nos finais de semana, era muito puxado. Chegamos a ter cinco clientes – e aí eu entendi que para o negócio dar certo eu precisaria de mais gente e de capital”.
“Todo mundo falando para eu maneirar — inclusive meu corpo”
Mas, vale frisar, ele continuava no banco. Dedicava-se à empresa durante o tempo livre, e foi um período bem difícil.
“Aconteceu muita coisa ao mesmo tempo”, relata Zé Renato, “a minha esposa decidiu empreender, abriu uma farmácia. Nosso filho estava para nascer. Aí os amigos que trabalhavam comigo na empresa resolveram sair porque o ritmo estava muito puxado e eu fiquei sozinho”. Resultado: ele foi parar duas vezes no hospital, vítima de gastrite.
Felizmente, naquele momento ele teve a melhor mentora possível: “Pati, minha esposa”. De acordo com Zé, ela o ensinou a ouvir — inclusive a ouvir o próprio corpo. “Foi quando eu desisti de procurar investidor, decidi fechar a empresa e voltei a focar minha energia no banco”.
Ilha à vista
Hoje, Zé Renato sabe que foi a melhor coisa que fez. Pois os ventos mudaram novamente, e, dessa vez, a favor dele. A administração do banco foi trocada, e o projeto de Banco Eletrônico foi aprovado.
Com dinheiro e autonomia para fazer acontecer, chamou Jorge Krug e outras pessoas que tinham trabalhado com ele antes. Ali nasceu o primeiro fruto da ideia de transformar os negócios do banco, o Banricompras. O objetivo era o de substituir os cheques por cartão. “Com isso, criamos a primeira rede concorrente da Redecard e da Visanet, as grandes operadoras de então”.
Na época, Zé Renato já pensava em seguir rumo próprio para dar maior alcance ao projeto. E quando foi procurado pela Goodcard, um negócio de smartcard que estava querendo montar uma rede própria, esse movimento foi acelerado.
Trazendo investidores para o barco
Ao contar que tinha a ideia de montar uma rede muito maior, da qual a Goodcard poderia se aproveitar, ouviu que precisaria conversar com os investidores da empresa. Zé Renato então marcou uma reunião com o sócio majoritário, Ernesto Correa. E esse foi outro encontro transformador na vida do empreendedor, na fazenda de Ernesto.
“Dizem que o cara bom não é o que tem as respostas, mas sim o que sabe fazer as perguntas. E ele sabia fazer todas as perguntas certas, sabia melhor que eu onde as coisas iam pegar. Só que eu estava tão preparado que sabia as respostas para cada coisa. Chegou ao final e eu disse: ‘Nós vamos abrir o mercado brasileiro de cartões, vai ser entre 5 e 10 anos”. “Ele me olhou e deu uma risadinha. Depois, ele me contou que pensou: ‘Ou esse cara é um grande empreendedor ou é um maluco. Depois, tive certeza de que era os dois.”
Na época, duas gigantes do setor, Visanet (atual Cielo) e Redecard tinham exclusividade sobre as bandeiras Visa e a Mastercard, respectivamente, o que obrigava estabelecimentos a operarem com pelo menos duas maquininhas. A GetNet viria a aceitar quase todas as bandeiras de cartão de crédito, inclusive as regionais.
E assim Zé Renato embarcou investidores de peso rumo à ilha. Porque ele sabia que não estavam investindo só pelo dinheiro, mas acreditavam que o negócio podia crescer muito e transformar o mercado. Nascia ali a GetNet, a “rede dos excluídos”.
Trabalho recompensado
A estratégia foi a de juntar o máximo de cartões regionais que existiam no Brasil em uma mesma rede. E, depois, “eletronizar” serviços que ainda não eram eletrônicos, começando pelas recargas de telefonia. Talvez você não se lembre, mas, naquela época, a recarga era realizada por meio da compra de um cartão.
Para mudar isso, Zé Renato e sua tripulação dedicaram-se a um trabalho e tanto: compraram 2.000 cartões físicos de telefonia, os rasparam, inseriram os códigos no sistema e foram às empresas de telefonia mostrar como era melhor a recarga eletrônica.
O esforço foi recompensado. Em 7 meses, estavam em todo Brasil e após um ano e meio já movimentavam R$ 3 bilhões só com recarga de telefonia.
Mar bravo
Aí veio a crise de 2008/2009. De acordo com Zé Renato, as operadoras de telefonia sofreram de “perda de memória recente”, esqueceram-se de que a GetNet as tinha ajudado a crescer, e as margens da empresa caíram pela metade.
Foram novos tempos de mar revolto rumo à ilha. Ele teve a ajuda de um coach para ajudá-lo a lidar com o processo.
“DAÍ ME VEIO UMA FRASE QUE ME ACOMPANHA: PENSE EM, TRABALHE POR, MAS NÃO CONTEM COM. TUDO TEM QUE TER PLANO B, PLANO C.”
O cachorro vai morder a perna do elefante
O empreendedor sabia exatamente do que precisava para atravessar aquela tormenta: ajuda para pressionar os grandes cartões a entrarem na rede. Então, como quem pede ajuda a um “irmão mais velho”, ele foi procurar bancos de fora do país.
Havia contatos para fechar com o Santander, mas o banco espanhol acabou comprando o Banco Real, que tinha participação na Visanet — empresa com a qual a GetNet queria concorrer. Ele já estava pensando em um plano B, quando houve uma reunião decisiva.
“Foi em um almoço em Madri com o VP do banco, o Ernesto Correa estava comigo. E, quando o espanhol quis saber porque deveria ser nosso sócio, Ernesto falou: ‘Quem tem que explicar isso é ele’, e apontou pra mim. ‘Aí expliquei que eles podiam escolher entre o cachorro ou o elefante, mas deixei claro que o cachorro ia morder a perna do elefante. Achei que tinha feito uma burrada”.
Desembarque na ilha
Pouco depois, o contrato foi assinado. E, em 2010, finalmente o mercado de cartões no Brasil foi aberto.
A GetNet cresceu, chegou a 2.700 colaboradores diretos e espalhou-se por mais de 100 mil estabelecimentos. Por isso, dada a importância da parceria para o banco, a parceria acabou evoluindo para uma proposta de aquisição pelo Santander, em 2014, por R$ 1,1 bilhão.
“Não sou fundador de nada”
Se foi difícil deixar a empresa que ajudou a criar? Sem dúvida, mas a sensação de era a de missão cumprida. E o último passo do empreendedor por lá foi elaborar uma lista com 88 nomes de profissionais que considerava essenciais para o futuro da companhia.
Eram pessoas alto CV –coeficiente de viração: gente que se vira, que não tem a boca maior que os braços e que foram fundamentais para a construção do negócio.
Hoje, está em um novo negócio, a 4All, uma plataforma para ajudar quem tem negócio tradicional a se tornar digital. E novamente contando com pessoas com alto CV.
“NÃO SOU FUNDADOR DE NADA, EU SOU UM ENGAJADOR DE FUNDADORES. O EMPREENDEDOR TEM A OBRIGAÇÃO DE PODER ENGAJAR AS PESSOAS E FAZER COM QUE TODOS SE SINTAM DONOS DA EMPRESA.”
Originalmente publicado em Endeavor