Tira uma foto minha com o Doutor

Nesta pandemia se vê por todo o país, de forma nítida, nua e cruel,  diferentes abismos sociais. Um desses abismos sociais fica evidente até mesmo nos hospitais, públicos e privados, todos em grande parte ocupados com pacientes do coronavírus. Nesses hospitais, mesmo em salas especiais, em geral toda branca, com uma mesa branca também, uma cadeira para atendimento e um médico. Ali, num detalhe, está todo o abismo, o abismo do racismo: o médico negro.

O jovem Fred Nicácio, ex-modelo, de boa altura e aparência, também já experiente na sua especialização de dermatologista, além de ter cursado fisioterapia, sente na própria pele a dor desse abismo social, a dor do racismo , mesmo nesse período da pandemia.

Uma senhora viu que ele atendia uma paciente no consultório. Como médico estava vestido a rigor, de jaleco branco e o estetoscópio (aparelho para ouvir os batimentos cardíacos)  em volta do pescoço. Ela não disse bom dia para o médico, não perguntou nada, deu meia volta na porta de entrada do consultório e perguntou para uma senhora que estava na sala de espera:

– Cadê o medico?

O Dr. Fred escutou. Engoliu em seco e continuou a consulta que fazia na senhora.

No Hospital de Lençóis Paulista, onde atendia, no segundo mês da pandemia, um senhor depois de ser atendido por ele de forma  demorada e atenciosa,  insistiu para ser internado. Ele tentou convencer o paciente que não precisava ser internado naquele momento, que poderia voltar para casa e tomar os medicamentos que relacionou numa receita. Esse senhor não aceitou a recomendação médica e saiu xingando todo mundo pelo corredor.

Na portaria da saída do hospital, chamou um dos porteiros de plantão e fez a seguinte pergunta:

– Quem aquele outro porteiro pensa que é?

O porteiro, amigo do Dr. Fred, falou para ele o comentário que tinha ouvido. O médico negro não se abalou também, se conformou e disse apenas que se tratava de um “covarde”, que não tinha dito isso na frente dele.

No mesmo hospital, o Dr. Fred atendeu uma senhora que depois da sua consulta fez inúmeras perguntas técnicas. Ele respondeu cada pergunta de uma forma simples e também técnica. O Dr. Fred recomendou a  ela tomar uma injeção no próprio laboratório do hospital e depois voltar para casa.

Essa senhora não agradeceu a consulta dele e foi até o laboratório. Com a receita na mão fez para a atendente a pergunta tradicional sobre o “rapaz negro”.

– Ele é enfermeiro ou médico?

Ao receber a resposta afirmativa que era um dos médicos do hospital não disse mais nada e foi embora.

O Dr. Fred ficou sabendo dias depois desse episódio. Sabe que precisa lidar com essa realidade no país. Filho de pais funcionários públicos, fez faculdade sempre com bolsas de estudos.  Para se formar foi uma luta diária e como médico tem que ser três vezes melhor que todos para conseguir trabalhar.

No Brasil, a raça negra representa 54% da população. Mas os médicos negros não alcançam 18% da população, segundo o último Censo do IBGE. Em 2015, num levantamento feito em São Paulo, entre todos os novos  médicos  formados nesse ano, apenas 0,9% eram negros.

Mas o Dr. Fred segue em frente. Sempre com a determinação de atender cada paciente com total dedicação e amor pela profissão que decidiu abraçar.  Ele não esquece o dia que atendeu a Dona Eunice, de 74 anos.  Ela chegou no seu consultório com o neto. Sua pele não era de negra. Desde o início da consulta a Dona Eunice parecia muito feliz. O Dr. Fred não resistiu e perguntou porque ela parecia tão feliz. Ela respondeu:

– Estou feliz. Em toda a minha vida nunca fui atendida por um médico negro.

No final da consulta chamou o neto, passou o celular para ele  e fez um pedido:

– Tira uma foto minha com o Doutor.

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