Já nos primeiros sinais do coronavírus ou no registro da última vítima da pandemia no Brasil, um território do Brasil, ou melhor, mais um abismo social brasileiro, onde vivem 100 mil pessoas em 21 mil residências, em precárias condições humanas, poderia se separar da atual pátria e se declarar como um novo país, neutro e autônomo.
Ali só 25% das residências têm rede de esgoto e 60% dos moradores utilizam recursos irregulares para obter energia elétrica. Mais de 50% das ruas são ainda de barro puro. Mais de 50% das habitações instaladas não têm água potável para beber. Sem também qualquer tipo de água para lavar as mãos, esse simples e singelo gesto de higiene tão divulgado e propalado para eliminar o vírus, a população local reunida foi à luta para sobreviver. Ergueu uma bandeira pela vida num local jurado de muitas mortes durante a pandemia.
Com o lema “Morador cuida de morador”, a comunidade começou a se organizar já em fevereiro de 2020, antes do registro de qualquer paciente contaminado pelo vírus. O temor era de que a pandemia, como numa espécie de rastro de pólvora, poderia começar numa rua e em pouco tempo contaminar toda a população local, devido à falta de condições de higiene e de serviços públicos básicos de saúde para atender a todas as pessoas que ali vivem e trabalham.
Para evitar essa tragédia, a comunidade montou um amplo plano com uma coordenação geral. Foi escolhido um presidente ou uma presidente para cada 50 famílias reunidas numa mesma rua ou num trecho bem determinado. Cada grupo dessas famílias tinha uma pessoa responsável. Essa pessoa responsável levava para cada família um fardo de comida, água e remédios quando necessários. No local, foi erguida uma cozinha comunitária que chegou a produzir só num dia 10 mil marmitas que foram distribuídas na comunidade.
Na própria comunidade, foram definidos os coordenadores do plano em geral. Eles tiveram a missão de buscar junto às empresas, empresários e instituições, recursos para compra de alimentos e dos remédios. Conseguiram contar com três ambulâncias exclusivas, equipadas para prestar serviços médicos, um motorista, uma enfermeira e um médico. Essas ambulâncias percorriam todo o território, e a equipe fazia consultas, procurava saber como estava cada família.
Esses coordenadores, no próprio território, também convenceram duas escolas a se transforarem em hospital para abrigar todas as pessoas que tivessem algum sintoma do coronavírus para que deixassem suas casas e ali ficassem em quarentena, em tratamento.
Na comunidade, um grupo de mulheres fez máscaras de pano para atender primeiro à comunidade, depois revender para fora e assim conseguir uma renda extra para cada uma delas.
Esse território, essa Nação, durante toda a pandemia teve menos registros de infectados, menos mortes e mais recuperados do que outras regiões com mais recursos individuais e públicos.
A manicure Maria Dolores, sem poder trabalhar na pandemia, aceitou o cargo de presidente da sua rua. “Nunca me senti tão útil na vida ao poder ajudar cada vizinho”, testemunhou ela. Para o presidente da União dos Moradores, Gilson Rodrigues, não dava para ficar de braços cruzados. “A comunidade toda se uniu, contra a pandemia, à favor da vida”. Nenhum voluntário foi remunerado. Os presidentes de ruas só tinham o privilégio de levar os mantimentos primeiro para a sua casa, se assim achassem necessário, antes de atender quem mais precisava.
Nesse local, onde não chegava assistência, os próprios moradores fizeram chegar. Onde não chegava uma ambulância, os próprios moradores fizeram chegar três ambulâncias. Encravada no meio de uma das mais ricas regiões de São Paulo, entre condomínios de luxo, (Jardim Vitória, Portal do Morumbi e Paços dos Reis), essa favela a céu aberto pode ser classificada como uma nova Nação que soube enfrentar a pandemia de forma isolada, ordeira, organizada e silenciosa. Esses moradores devem agora erguer uma trincheira para defender urgentes, necessários e de direito diferentes benefícios sociais. Mas já podem saudar a bandeira erguida por todos desse novo país, a República de Paraisópolis.
Por: Acari Amorim