A inovação social no Brasil já não é apenas um novo conceito, mas realidade. “Não existem mais motivos para uma pessoa não trabalhar no que gosta e promover a melhoria de vida coletiva. Isso já está acontecendo e cada vez mais temos mais ferramentas, atores e eventos para mudar”, afirma o gerente-executivo do Instituto Comunitário de Florianópolis (Icom), Anderson Giovani da Silva. Florianópolis é uma das capitais que vivencia a inovação social de forma mais intensa. Entre novembro e dezembro, três importantes eventos sobre negócios que visam à melhoria de vida e utilizam o lucro para manter suas atividades ocorrem na cidade.
No início de novembro, o Instituto integrou a promoção do Seminário Social Good Brasil 2014, no Centro Integrado de Cultura (CIC) e a Hub Escola Floripa 2014, em vários pontos da cidade. Ambos foram realizados dia 5. Criado pelo Icom e Instituto Voluntários em Ação, em setembro de 2011, e hoje uma organização independente, o Social Good Brasil (SGB) trata do uso da tecnologia na transformação social. O primeiro seminário sobre o assunto em 2012 discutiu o conceito de negócio social, passando para uma abordagem mais estratégica ano passado durante um seminário promovido em São Paulo para 300 pessoas. Nesta edição, em Florianópolis, o foco foi apresentar experiências práticas de todo Brasil e visão global.
Para os inovadores de fôlego, o desenvolvimento continua em dezembro, quando ocorre a Maratona de Negócios Sebrae, promovida pela primeira vez no Rio de Janeiro e agora também em Florianópolis. Inicialmente prevista para novembro, foi transferida e será sediada pelo próprio Sebrae, entre 5 e 7 de dezembro. A instituição vai promover capacitação para negócios sociais em operação, contato com investidores e premiação para os vencedores.
Exemplo de inclusão
Com dificuldades financeiras e uma forte meta social – investir na inclusão de portadores de deficiência no Brasil, a premiada ONG Noizinho da Silva encontrou no negócio social uma solução de sustentabilidade. Há um ano, a equipe de Erika Foreaux criou a The Products, responsável por gerenciar a produção, fabricar e comercializar os produtos da Noizinho: a Carteira Escolar Inclusiva e a Ciranda Comercial, ambos móveis desenhados e patenteados por Erika. A Ciranda atende crianças de até seis anos e a Carteira atende estudantes do ensino fundamental e médio, ambas oferecendo postura e conforto para brincadeiras ou estudos. “Resisti a criar a empresa, mas entendi que era realmente necessário. Uma ONG não vive de ar, e o dinheiro fica cada vez mais curto”, conta Erika.
Todo lucro da The Products é revertido à Noizinho, fundada há 10 anos por Erika para promover a inclusão de portadores de deficiência através de móveis planejados e projetos, como a premiada tecnologia social chamada Ciranda Social. “Tudo acaba acontecendo de uma maneira muito legal, e recebemos muitos abraços e alegrias. Os pais conseguindo fazer o equipamento, que é fofo de ver, leve, pequeno, e vai deixar a criança sentadinha, se emocionam muito. Gritam aleluia, falam em milagre, choram ao tirar o filho do colo e vê-lo brincar com outras crianças de igual para igual. Isso que nos move”, conta Erika.
A Ciranda acontece quando há verba e, até o final deste ano, pelo menos mais duas oficinas, que duram um final de semana cada, estão previstas. Toda a família da criança beneficiada comparece, com direito à locomoção, lanche e atividades de recreação, enquanto a mãe ou pai do portador de deficiência aprende a construir a própria Ciranda, uma cadeirinha que permite que a criança, de até seis anos, fique sentadinha confortavelmente no chão para poder brincar com outras crianças ou até curtir a beira do mar e outros passeios de maneira mais humana. Entre outros prêmios, a iniciativa foi contemplada com o primeiro lugar no prêmio Finep de Inovação 2012 na modalidade tecnologia social – pode ser reaplicada e possui demanda contínua. A carteira (com cadeira e mesa) é ajustável a diferentes alturas da criança e seu designer é universal, podendo ser utilizada por pessoas com ou sem deficiência.
Além da criação da empresa, a Noizinho desenha outros novos projetos. Ela planeja lançar, já no próximo ano, um modelo de soluções e produtos que colaborem para que a pessoa portadora de deficiência se movimente mais dentro de casa e tenha condições de sair mais na cidade em que mora. O projeto está sendo desenhado em parceria com a designer colombiana Luz Romero e o italiano Alessandro Vassallo (ambos da VRD Reserch).
Inovadores rebeldes
A Noizinho começa a surgir a partir do nascimento da segunda filha de Erika, a Sofia, dois anos mais nova que Julia. “Ela foi diagnosticada cinco meses depois de nascer, e vivi dramas que tantas mães sofrem, entre um misto de culpa e ansiedade”. Em busca do conforto de Sofia, Erika importava equipamentos. “Mas quando eles chegavam ao Brasil, eu tinha medo de colocar minha filha neles. Não ficavam no chão, seguravam a criança com 10 cintos, tinham um desenho que chegava a amedrontar outras crianças”, conta. Assim nasceu a cadeirinha Ciranda. Já a carteira começou a ser desenhada quando Sofia começou a estudar e, na sala de aula, não havia mesa ou cadeira adaptada para ela.
A dificuldade se transformou em iniciativa social, o que Érika aprendeu desde cedo. Nascida no Brasil, Erika foi criada na França desde os dois anos, exilada junto aos pais que combateram o regime militar dos anos 70. Adolescente, participou do movimento punk e depois do grupo de ativistas chamado “Não Toque no Meu Amigo”, contra o racismo. Estudante, ela começa a descobrir sua brasilidade, conhece seu atual marido na Europa, o brasileiro Victor Renault Junior, e volta ao seu país natal.
Em 2003, Erika resolve criar a ONG com a meta de promover a inclusão e faz graduação em Designer Industrial. No caminho, a Noizinho conquistou prêmios e financiamentos como da Eletrobras e Petrobras – que financiou a Ciranda até 2010 – e estava migrando para um modelo de negócio industrial. Com o apoio do Ministério do Desenvolvimento de Indústria e Comércio, eles conseguiram fazer o protótipo e molde para industrializar a carteira. Entregaram 150 unidades do projeto-piloto, criado com a ajuda do pai de Erika, que morreu em 2010. Um ano depois, o marido Renault ingressa também na ONG e eles projetam a The Products enquanto Júlia, de 22 anos, cursa Relações Públicas, Sofia, de 20 anos, Psicologia na PUC, e Nina, de 15 anos, cursa o primeiro ano do ensino médio e planeja salvar a África. Se a filha de Érika não salvar a África, quer ser secretária-geral da ONU.
Malha solidária
A Malharia Social desenvolve especialmente camisetas, regatas e babys looks com malhas especiais e preço competitivo. Oferece trabalho às mulheres recém-libertas e detentas, cursos de capacitação em parceria com o Senac, Udesc e Estácio de Sá e as encaminha ao mercado. A empresa começou a ser criada no final de 2012, quando o jovem Filipe Rodrigues da Silveira deixou de lecionar educação física na escola existente no interior do Presídio de Florianópolis para desenvolver o projeto e buscar parcerias. Foi movido pela compaixão: “Se um homem é preso, a namorada ou mulher dele só pode deixá-lo quando ele for solto. É obrigada a fazer visita e dar amparo. Elas não recebem visita. Mulher presa é abandonada, e a maior dificuldade delas é ficar longe dos filhos. Elas precisam mais deste apoio”, diz.
O primeiro ano foi de estruturação física e capacitação das meninas, com a produção iniciada em outubro. Conseguiram parcerias e doações para a reforma e ambientação do espaço e ainda a doação de 17 máquinas de costura profissionais da empresa Kyly. Recentemente começaram a contornar o desafio de vender o produto, com o apoio do Icom, que mantém o salário de Lucas Barcellos, responsável pelas vendas, mas agora enfrentam falta de mão de obra. Hoje com apenas três costureiras na sede e duas internas, no final de agosto tiveram que produzir em ritmo acelerado 4,4 mil camisetas para o Circuito Light Rei e Rainha do Mar, realizado pelo Instituto Faz Sport, do Rio de Janeiro.
Filipe enfrenta as dificuldades do sistema prisional. Todas as meninas precisam de autorização do juiz para trabalhar. “Muitas das selecionadas inicialmente e que chegaram a fazer os cursos depois tiveram suas autorizações suspensas, o que continua acontecendo, e assim ficamos sem mão de obra e elas sem se desenvolver profissionalmente”, aponta ele. Teoricamente, as detentas em regime semi-aberto poderiam ser liberadas para o trabalho, e as de regime fechado precisam trabalhar internamente, mas mesmo algumas de regime semiaberto acabam não conseguindo mais a autorização para continuar.
O diretor do Departamento de Administração Prisional (Deap) da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, Leandro Antônio Soares, informou através da assessoria que para que uma presa tenha revogada a autorização de trabalho externo é necessário que ela tenha cometido alguma das faltas disciplinares previstas na Lei nº 7.210/84. “Quando um preso comete uma falta disciplinar, a autoridade responsável pela sua custódia elabora uma comunicação oficial e a remete ao juizado responsável. É o juiz quem vai julgar a suposta falta cometida e assim determinar uma sanção disciplinar ou o imediato reestabelecimento dos direitos do preso, como a volta ao trabalho, por exemplo”, informa o Deap.
Por isso, agora a Malharia provavelmente terá que mudar suas instalações para o interior do presídio, em outro espaço que também precisa ser reformado. “A estrutura é antiga e os espaços para novas construções são escassos e devem atender aos requisitos que vão desde autorizações legais à segurança de presos e funcionários”, atesta a assessoria.
Mesmo assim, a Malharia seguirá firme, dentro ou fora dos muros. “Nossa meta é fazer tudo isso dar muito certo e preparar cada vez mais mulheres para conseguir trabalhar e se sustentar. A dependência do trabalho do tráfico quando se sai da prisão é grande, justifica Lucas Barcellos. Mas a venda não é simples, diz Barcelos. “Tem gente que deixa de encomendar com a gente porque conseguiu por centavos ou um real mais barato. O valor do desenvolvimento social que proporcionamos não é avaliado pela maioria.”