Por Alcione Pereira, fundadora e CEO da Connecting Food*
O Pacto contra a Fome, movimento suprapartidário e multissetorial que nasceu para acabar com a fome no Brasil até 2030, foi lançado num evento importante na história do nosso país. Um grande passo foi dado, envolvendo múltiplos setores, entre a iniciativa privada – que criou o movimento -, o governo e a sociedade civil, para resolver um problema que também tem raízes diversas. Mas, e agora?
Em primeiro lugar, é bom entendermos que não se trata de um passe de mágica e que não será o “pacto”, este nome, que vai resolver o problema da fome, e sim as ações conjuntas que efetivamente serão tomadas a partir dele. A iniciativa tem a finalidade de ser um movimento suprapartidário e multissetorial com o propósito de contribuir no combate à fome e na redução do desperdício de alimentos no Brasil. A nossa visão, alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, é acabar com a fome no país até 2030. É uma meta ambiciosa, mas temos a convicção de que pode ser alcançada, porque terá o envolvimento do maior número possível de atores que se relacionam com o tema.
Algo em que temos trabalhado muito nos últimos tempos é a disseminação do conceito de que precisamos ressignificar a nossa relação com o alimento, para que ele não tenha apenas o valor comercial que lhe é dado atualmente, mas volte a ser enxergado como o combustível para as realizações humanas. Nesse sentido, ele não pode ser privilégio de quem consegue comprar a comida mais cara, os itens premiados ou considerados no topo das avaliações puramente comerciais. Antes, o alimento tem que ser garantido como base para todos e cada um dos nossos cidadãos.
Os números do paradoxo entre o desperdício e a fome já são bem conhecidos, mas também sabemos que muita gente ainda não tem dimensão deles. Por isso, vale a pena relembrar:
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⅓ de tudo o que se produz, desde o cultivo até o consumidor final, acaba indo para o lixo; só no Brasil, isso representa 55 milhões de toneladas;
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6 em cada 10 brasileiros sofrem de algum grau de insegurança alimentar atualmente;
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desperdiçamos 8 vezes mais alimentos do que aquilo que seria necessário para alimentar as 33 milhões de pessoas que hoje passam fome no país.
Não faz o menor sentido que uma pessoa coloque comida a mais no prato e depois jogue fora um terço daquilo. Quando transportamos isso para quem produz e comercializa, também não faz sentido algum que sejam descartadas as caixas de frutas, verduras, legumes etc. compradas além do que se vende ou que sobram por qualquer motivo de má gestão interna. Independentemente do que gerou o excedente, ele precisa ter um melhor destino do que o lixo.
Em outros artigos, já falamos também dos sérios impactos ambientais negativos que os excedentes provocam. Mas o fato de não cumprirem o seu papel de nutrir pessoas, para nós, é o mais grave neste cenário. Nunca é demais trazermos o questionamento que fizemos recentemente: “Em que momento da História alimento passou a ser considerado resíduo?”.
Agora, se há excedentes para distribuir, por que será que tantas empresas da cadeia alimentícia não fazem isso? Bem, precisamos esclarecer que já existe um bom número delas que fazem doações, sim. Mas, diante das possibilidades e da necessidade, ainda são poucas. O porquê está na burocracia e na falta de incentivos. Ou podemos até dizer, nas “penalizações”.
Claro que é uma metáfora, mas realmente parece que quem doa não é estimulado, já que tem de pagar impostos por cada transação desse tipo. Imagine: uma empresa vai deixar de descartar toneladas de produtos e, portanto, vai deixar de poluir tanto o meio ambiente; de quebra, vai ajudar a alimentar centenas ou milhares de pessoas que não têm nada para comer. Mas vai ter que pagar impostos para fazer essa comida chegar a quem precisa. Faz algum sentido isso? As empresas deveriam, ao contrário, receber um incentivo, uma redução na carga tributária. Não ter que pagar mais impostos.
A nossa missão vem caminhando nessa direção, de fomentar a redistribuição desses excedentes, há vários anos. E é por isso que as coalizões, como o Movimento Todos à Mesa, são tão importantes, porque unem as forças de vários atores em torno de uma mesma causa. O Pacto Contra a Fome é outra iniciativa poderosa da qual fazemos parte porque, como foi definido no seu código de ética, entendemos que todos somos parte do problema, e só juntos poderemos encontrar a solução. Porque juntos, inegavelmente somos mais fortes e capazes de levar propostas a quem é de direito no governo, para implementar políticas públicas que facilitem o processo das doações de alimentos, por exemplo. E para mostrar à sociedade que é possível fazer mais e melhor por aqueles que precisam.
Os cidadãos, por meio da criação de organizações civis e similares, também vêm dando a sua contribuição. E não podemos negar que o governo de maneira geral, ao longo das décadas, trabalhou de alguma maneira sobre a questão. Mas o fato é que o ritmo é lento demais, muitas vezes, e o Brasil voltou a entrar no mapa da fome.
Temos acompanhado as notícias sobre os planos e iniciativas que o atual governo tem para que o país seja novamente retirado desse mapa. Vários desses planos foram destacados pelos senhores ministros e outros representantes que estiveram presentes no evento desta semana, confirmando que existe verdadeiramente vontade e ação no mesmo sentido em que caminha o nosso movimento. Felizmente, são iniciativas que contemplam melhorar diferentes aspectos, como a redução da carga tributária das empresas, a criação de postos de trabalho, o auxílio por meio do Bolsa Família etc.
A redistribuição de alimentos que seriam jogados fora, não acaba com o problema, mas sim, alivia a fome no imediato. Como dizia Betinho (palavras que jamais devem ser esquecidas): “quem tem fome, tem pressa”. Estamos atentos e fazendo a nossa parte, junto de inúmeros parceiros, para reduzir o desperdício de alimentos na cadeia produtiva. E também para que, enquanto houver excedentes, eles possam ser doados e, assim, utilizados para implementar a visão do Pacto Contra a Fome: até 2030, todos os brasileiros terem a garantia do seu direito constitucional de acesso à nutrição básica.
*Engenheira de Alimentos, Mestre em Sustentabilidade pela Fundação Getúlio Vargas e MBA em Gestão Empresarial, Alcione Pereira é fundadora e CEO da Connecting Food – uma foodtech de impacto social que trabalha na gestão inteligente de doação de alimentos excedentes. Além disso, ela é co-idealizadora do Movimento Todos à Mesa, primeira coalizão de empresas brasileiras unidas para a redução do desperdício de alimentos e combate à fome, atua como consultora técnica em projetos relacionados à cadeia de suprimentos humanitária, incluindo a redistribuição de alimentos oriundos do desperdício, para a FAO/ONU e Ministério da Cidadania.