Por Alcione Pereira, fundadora e CEO da Connecting Food*
Com muita perspicácia, o representante da FAO para América Latina e Caribe, Mario Lubetkin, deu a sua opinião sobre o posicionamento da esfera federal em acabar com a fome no Brasil, salientando que será difícil a tarefa, sem uma atuação mais ampla de todos os setores da sociedade.
Realmente, a fome é um problema sistêmico, e não podemos nos furtar à nossa responsabilidade nem ser ingênuos, colocando nas mãos de uma única esfera de poder a erradicação desse problema tão sério. Especialmente porque ele não é um privilégio do nosso país: no mundo inteiro, a insegurança alimentar grave (falta de comida na mesa) aumentou muito nos últimos anos. Segundo os dados da própria ONU, são quase 830 milhões de pessoas sem ter o que comer, todos os dias. E isto não está sendo colocado aqui nesta reflexão para tentar diminuir o impacto negativo da situação no Brasil. Ao contrário: o que se quer é chamar a atenção para uma abordagem mais realista do cenário.
Vejamos: tivemos uma pandemia (ou ainda temos, mas agora sob controle), que danificou seriamente a economia global, em todos os setores; a guerra entre Rússia e Ucrânia gerou um grande impacto na segurança alimentar dos países pela suspensão do suprimento de grãos, ocasionando, consequentemente, uma alta nos preços; para complementar, enfrentamos o agravamento da crise energética, que também é reflexo da crise climática. Ou seja: temos uma conjunção de fatores que não podemos ignorar.
Hoje, mais do que nunca, é evidente que o impacto das decisões políticas de outros países reverbera na segurança alimentar do globo. Isto significa que precisamos considerar o que acontece ao nosso redor, para além das nossas muralhas invisíveis, se quisermos ser efetivos na solução dos problemas do nosso quintal. Afinal, essas conjunturas sociais, ambientais e geopolíticas são interdependentes, reforçadas pelas políticas de abastecimento de alimentos adotadas no final da segunda guerra mundial.
Nesse contexto, e nunca deixando, então, de olhar para fora para entender de onde mais vêm as causas do que enfrentamos em nosso país, a pluralidade de ações e a necessidade de envolver os diversos atores desse cenário de maneira multissetorial são condições para o sucesso da empreitada contra a fome e a insegurança alimentar.
As políticas públicas são essenciais, até porque precisamos delas para que outros setores da sociedade possam também fazer a sua parte. É muito mais fácil uma empresa investir, por exemplo, em ESG – e, assim, melhorar os seus próprios resultados e os impactos da sua operação no meio ambiente e na sociedade – se ela tem incentivos governamentais que a ajudem. É muito melhor quando uma organização social, que atende pessoas em situação de vulnerabilidade, tenha sua situação regularizada perante o governo, para poder chegar a mais gente. E cada cidadão também conseguirá entender melhor o seu papel nessa complexa engrenagem, se perceber que a empresa onde trabalha, a prefeitura da sua cidade, o governo do estado e do país têm condutas alinhadas.
Por isso, cada vez mais, a palavra-chave parece mesmo ser “consciência”, do micro ao macro. Sem conhecermos os problemas, a realidade, não há como nem porquê atuar.
Quando um produtor de alimentos, seja no campo ou na indústria, sabe onde estão as suas perdas, consegue evitar maiores desperdícios. Quando um varejista entende qual nível da sua operação impacta nas vendas de alimentos, então consegue atuar para corrigir as falhas e deixar de jogar esse bem tão precioso no lixo. Quando um membro da família tem real noção do quanto precisa comprar para alimentar todos em casa, pode passar esse conhecimento aos filhos e demais integrantes do lar, para que juntos também combatam as suas perdas.
Mas há muitos outros atores neste circuito que envolve a produção e comercialização de alimentos e que passa por toda a sociedade e deságua – figurada e literalmente – no meio ambiente. Estando todos a par da sua parcela de responsabilidade, fica tudo mais fácil de gerenciar, mesmo com toda a complexidade. E é aqui que fica a boa notícia: dá para atuar! Uma solução que está perfeitamente ao alcance das empresas é adotar iniciativas de combate às perdas e ao desperdício e, quando realmente não for possível, doar o que sobra. A doação de alimentos já está regulamentada no Brasil e é fácil fazer parte dessa empreitada, seja um pequeno varejista ou uma grande empresa do ramo.
Estar confiante em uma nova diretriz governamental neste tema traz um novo impulsionamento. Isto somado aos setores da sociedade que reconheçam o seu papel e coloquem a mão na massa para erradicar a fome pode ser, finalmente, um passo significativo para a sociedade brasileira.
* Engenheira de Alimentos, Mestre em Sustentabilidade pela Fundação Getúlio Vargas e MBA em Gestão Empresarial, Alcione Pereira é Fundadora da Connecting Food – uma foodtech de impacto social que trabalha na gestão inteligente de doação de alimentos excedentes. Além disso, ela é co-idealizadora do Movimento Todos à Mesa, primeira coalizão de empresas brasileiras unidas para a redução do desperdício de alimentos e combate à fome, atua como consultora técnica em projetos relacionados à cadeia de suprimentos humanitária, incluindo a redistribuição de alimentos oriundos do desperdício, para a FAO/ONU e Ministério da Cidadania.