O acaso na perda de valor de uma marca

É bem conhecida dos advogados e juízes especializados em direito marcário a doutrina segundo a qual uma marca pode perder seu valor, tanto como ativo intangível quanto como sinal distintivo e atrativo, em razão de práticas do próprio titular da marca, bem como de terceiros – concorrentes ou não.

No primeiro caso, isto é, na hipótese de perda de valor e integridade da marca decorrente de atos do próprio titular, estão por exemplo a má prestação de serviços, defeitos grosseiros nos produtos, um anúncio infeliz feito por um alto diretor, uma publicidade de gosto duvidoso, assim como más escolhas de marketing que levam o público a identificar uma marca com o gênero do produto e serviço que assinala, ocasionando o fenômeno da degeneração ou generificação – fórmica, isopor, rimmel tênis, por exemplo, já foram marcas registradas.

No segundo caso, está o uso indiscriminado de sinais idênticos ou semelhantes por terceiros, a pirataria, a veiculação de informações falsas e desabonadoras, a publicidade comparativa ilícita, etc.No entanto, recentemente circulou uma notícia que, de forma surpreendente, incluiu entre as causas de perda de valor das marcas o elemento do azar e do fortuito. Trata-se do abandono da marca “ISIS”, de titularidade da empresa belga antigamente denominada ISIS CHOCOLATIER.

Conforme noticiado, a fábrica de chocolate europeia, que já havia mudado de nome uma vez para adotar a marca “ISIS”, viu-se obrigada a abandonar esse sinal em vista de constantes e-mails, cartas e telefonemas de consumidores que a associavam com o grupo terrorista de mesmo nome, responsável por morticínios na região da Síria e do Iraque, inclusive os infames e tétricos vídeos de decapitações de cidadãos estrangeiros.

A fama do grupo terrorista sem dúvida eclipsou a do chocolate. Basta uma pesquisa em buscadores da internet para verificar que as imagens e notícias sempre se referem ao ISIS do oriente médio e não ao chocolate que, inclusive, é vendido no Brasil. No caso do chocolate “ISIS”, trata-se, realmente, de um grande infortúnio. O acrônimo, oriundo do nome inglês da organização radical – Islamic State in Iraq and Syria -, surgiu em junho de 2014, quando se autodeclarou califado universal. Já a marca “ISIS” havia sido escolhida em 2013, por ser mais reconhecível e menos regional que o nome anterior, “ITALO SUISSE” (O nome atual é “LIBEERT”, sobrenome principal da família que tem o controle societário da companhia).

Muitas vezes, as marcas são lançadas sem pesquisas prévias quanto ao seu possível significado em outras línguas e, tendo perdido a oportunidade de se acautelar contra possíveis “falhas na comunicação”, o titular da marca acaba por ver seus investimentos perdidos. Isso ocorre, sobretudo quando as marcas têm, em determinadas regiões ou países, significados pejorativos ou inconvenientes com relação aos produtos e serviços que identificam.

Se, por exemplo, o grupo terrorista ISIS já existisse com este nome, ainda que com notoriedade limitada, ao tempo da escolha feita pela chocolateira belga, certamente não poderíamos atribuir apenas a um golpe de azar a perda do valor de sua marca. Sobretudo em operações multinacionais como a ISIS CHOCOLATIER, as empresas têm o estrito dever, inclusive para com seus investidores, de fazer uma pesquisa ampla de marcas, conhecido no ramo como “busca de anterioridade”, e que deve abranger não só direitos anteriores de terceiros, como também questões de significados pejorativos, sob risco enorme de não obter os retornos esperados junto ao mercado consumidor.

Não obstante, grandes empresas já cometeram erros desse jaez. Lembre-se, por exemplo, o caso da famosa marca de jipes “PAJERO”, rejeitada em países hispanófonos por significar “onanista, masturbador”. Outro exemplo bem conhecido dos profissionais da área é a marca também automobilística “MR2”, da Toyota. Seu insucesso, contudo, decorreu de uma sutileza: embora seja uma sigla aparentemente técnica e desprovida de significado, para francófonos sua leitura leva à palavra “merde”, que nos escusamos de traduzir.

Entre nós houve o famoso, embora já antigo, caso do automóvel “FORD PINTO”, que virou motivo de piada, embora, ao que nos consta, não tenha propriamente atrapalhado as vendas do modelo em nosso mercado. Mais recentemente, a Apple enfrentou problemas ao lançar seu módulo de interação com o usuário – “SIRI” – na Geórgia, onde a palavra significa o órgão genital masculino, e no Japão, por se assemelhar muito à expressão pejorativa, em japonês, para nádegas ou traseiro.

Os lançamentos apressados de produtos que acabam fracassando por suas marcas terem significados especiais em certas línguas estrangeiras se assemelham às publicidades que geram no público a associação direta e semântica da marca com o próprio produto, favorecendo à perda da marca pela degenerescência, pois são espécies de danos provocados pelo próprio titular contra si mesmo. Contudo, a divulgação de uma marca, sobretudo quando feita em escala continental ou global, pode facilmente evitar contratempos desse tipo através de buscas prévias de anterioridade feitas com profundidade e cuidado.

Embora grandes empresas tenham o costume de conduzir buscas de anterioridade, nem sempre o fazem com o foco de associação a termos pejorativos ou inconvenientes, que demandam não apenas uma boa base de dados, mas sobretudo um profissional com um sólido conhecimento de línguas, da cultura local e de fatos da atualidade. Com efeito, uma falha nesse aspecto da busca pode levar até mesmo ao indeferimento do pedido de registro marcário por se considerar a marca ofensiva, nos termos do artigo 124, III, da Lei da Propriedade Industrial (Lei nº. 9.279/96).

Mas não apenas empreendimentos de alcance internacional devem ter tal preocupação. Num país de extensões continentais como o Brasil, muitas vezes uma marca tem significados peculiares em determinadas regiões. Apenas a título de exemplo, a palavra “château”, francês para castelo e comumente usada no ramo alimentício e hoteleiro, significava prostíbulo até poucos anos atrás no Estado do Maranhão.

O exemplo da marca “ISIS” nos mostra como o caso fortuito pode afetar profundamente o patrimônio de uma empresa, mesmo em seus aspectos intangíveis. Não obstante, muitos danos e perdas sofridos por empresários seriam facilmente evitáveis com uma conjunção de prevenção (pela busca de anterioridade mais ampla e aprofundada) e de repressão a infrações por terceiros. No mundo das marcas, como em tudo o mais, vigora a lei da entropia: a inércia leva à perda de valor e, até mesmo, de direitos.

*Felipe Barros Oquendo é advogado, sócio do escritório Di Blasi, Parente & Associados, Mestre em Direito pela UERJ.

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