Fazendas aqui. Florestas aqui também!

O desenvolvimento social e econômico, em seu modelo padrão, sempre esteve atrelado a impactos na natureza. Desde de que o Homo sapiens, impulsionado pelo volumoso cérebro e por polegares opositores deixou de ser uma espécie como “outra qualquer”, avançamos em definitivo para a produção do nosso próprio alimento.

Há cerca de 10 mil anos, com o florescer da agricultura, mudamos a nossa relação com a biosfera. A produção de alimentos permitiu que de nômades, passássemos a nos organizar em povoamentos, e depois em cidades. Mais recentemente, quando encontramos a bonança representada pelo uso de combustíveis fósseis, as mudanças foram aceleradas. Gradativamente, seguimos avançando sobre cada recanto do planeta, reproduzindo modelos e paisagens que nos oferecem mais segurança, energia e conforto.

De lá para cá, a população humana cresceu vertiginosamente. Estima-se que há 10 mil anos éramos cerca de 1 milhão de pessoas, caçando, coletando e iniciando o exercício da agricultura e pecuária. Hoje, temos 7,7 bilhões de indivíduos para alimentar, abrigar, aquecer e… ostentar.

Todas essas conquistas, no entanto, vêm ocasionando sérias consequências ambientais que não podem ser ignoradas. Basta dizer que somos, como espécie, protagonistas da sexta extinção em massa, sendo que as outras cinco foram causadas por eventos físicos, como choques de asteroides ou erupções vulcânicas. Rios, mares, florestas, atmosfera… Nada parece escapar da avidez com a qual ocupamos espaços e devoramos recursos.

Neste sentido, e na atual discussão sobre o aumento dos índices de desmatamento em nosso país, uma das questões que mais se ouve é: os países da Europa, que promoveram ao longo da história a ocupação agrícola e urbana do seu território poderiam “dar lição de moral” sobre o desmatamento no Brasil?

Em primeiro lugar temos que considerar que a ciência apresentou nas últimas décadas avanços gigantescos, que claramente apontam para a importância da conservação dos ecossistemas e sua relação com a nossa qualidade de vida. No passado, pouco se conhecia a respeito e não havia compreensão sobre a correlação entre perda da cobertura florestal e os impactos subsequentes. Assim, não se pode nivelar as responsabilidades de quem desmatou no passado e quem o faz neste momento.

Um outro aspecto é a espantosa complexidade das interações existentes em uma floresta tropical. Florestas temperadas, como as da Europa evoluíram pressionadas por um clima rigoroso e por isso temos a presença de um conjunto relativamente baixo de espécies. Isso também torna a restauração florestal destes ambientes uma tarefa mais fácil. A floresta tropical, uma vez perdida, leva junto com suas cinzas um conjunto de interações e informações únicas. Em outras palavras, queimar florestas tropicais equivale a queimar bibliotecas!

Assim, a destruição pretérita de ambientes florestais, feita pelos europeus, não deve ser usada como justificativa para o nosso atual procedimento. Hoje estamos amparados em conhecimento que deixa claro o valor da conservação das florestas para o equilíbrio do ecossistema, proteção da biodiversidade, regulação do regime de distribuição de chuvas (importante lembrar que apenas 10% das nossas plantações são irrigadas), polinização e segurança biológica para os cultivos agrícolas e, claro, para a nossa qualidade de vida.

Por vezes também nos esquecemos que outros setores podem ser severamente impactados pelo desmatamento. Um país que se gaba da sua matriz energética “limpa”, fundamentalmente gerada por usinas hidroelétricas, não pode fechar os olhos para ações que possam comprometer o regime de chuvas, a vazão dos rios e, consequentemente, o nível de seus reservatórios.

Portanto, bons conselhos são bem-vindos. Principalmente quando são bons para o planeta, seus habitantes e também para os negócios! Para a nossa sorte – sempre ela -, a mesma natureza que nos brindou com a segunda maior área florestal do planeta, também nos contemplou com elevado potencial agrícola, sendo que atualmente possuímos a terceira maior área de produção agropecuária do planeta, ocupando 34% do território nacional. O agronegócio, que é responsável por 21,6% do PIB brasileiro vem, ano após anos, sendo o esteio da nossa economia.

Como disse Nathalie Walker, pesquisadora da Tropical Forest and Agriculture at National Wildlife Federation, “o Brasil é um país de sorte e não precisa escolher entre a agricultura e o meio ambiente para ser potência agrícola da próxima década”.

Para não desperdiçarmos mais essa oportunidade é fundamental adotarmos duas estratégias. A primeira é a implementação efetiva do novo Código Florestal, cuja construção foi fruto de uma intensa discussão política e técnica. Se não é o instrumento dos sonhos de uma ou outra parte, não mais importa. Esse regulamento é agora o nosso principal guia de procedimentos.

Como manifesta a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, que reúne representantes do agronegócio, do setor florestal, das entidades de defesa do meio ambiente e da academia, há um claro consenso: “a implementação do Código Florestal, em sua atual configuração, é o primeiro passo para fortalecer a produção agropecuária e, ao mesmo tempo, a conservação ambiental no país. Esse momento chegou e não pode mais ser adiado”.

A segunda estratégia é intensificar a produção agrícola, florestal e a pecuária em locais de baixa e média produtividade ou em regiões já degradadas, com o auxílio da ciência, descontinuando gradativamente a expansão do território na direção de áreas ainda cobertas por remanescentes de vegetação nativa.

Em um vídeo divulgado recentemente, o engenheiro florestal Tasso Azevedo, do Observatório do Clima, expõe dados que, tecnicamente, demonstram as falácias relacionadas ao embate entre a conservação e a produção, intensificado ao longo dos últimos meses, em função da postura do atual governo federal. O vídeo mostra, por exemplo, que o estado de São Paulo vem ampliando suas áreas agrícolas (sobre pastagens degradadas) enquanto que a cobertura florestal nativa também vem obtendo crescimento considerável.

Essa intensificação produtiva está em nossas mãos: o Brasil dispõe de tecnologia, profissionais capacitados, excelentes centros de pesquisa e produtores rurais engajados. O número de startups voltadas a soluções de gestão e tecnologia para o agronegócio tem apresentado um crescimento impressionante.

O avanço da biotecnologia em todas as suas frentes, as técnicas voltadas ao manejo de solos e a recuperação da sua capacidade de infiltração de água são elementos fundamentais na estratégia da intensificação da produção de alimentos, biocombustíveis, madeira e seus derivados. Em paralelo, a agricultura de baixo carbono permite significativa redução das emissões de gases do efeito estufa, contribuindo assim para minimização da crise climática.

Nossas áreas florestais, uma vez conservadas, ainda poderão levar o Brasil à liderança de uma nova revolução econômica, baseada nos ativos naturais e nos serviços ambientais. Como se vê, não existe dicotomia, mas dependência entre produção e conservação. Não podemos nos dar ao luxo de perder mais este bonde carregado de oportunidades.

Há algum tempo vem sendo muito criticado pelas redes sociais um relatório elaborado por David Gardner & Associates que sugere que países ricos, especialmente os EUA, deveriam desenvolver a agricultura, enquanto países tropicais, como o Brasil, ficariam com a missão de preservar florestas. Esse relatório tem como título “Farms here. Forests there” (em português: Fazendas Aqui. Florestas lá). O relatório nos causa natural repulsa, mas também deixa claro o receio que eles têm em relação à competitividade do agronegócio brasileiro.

E podemos deixá-los ainda mais receosos! Juntos, empresas do agronegócio e de base florestal, agricultores e pecuaristas, governo e centros de pesquisa, poderiam reforçar o papel do Brasil como grande potência provedora de alimentos e também o maior exemplo na conservação de florestas e biodiversidade.  O nosso lema então seria: “Farms here. Forests here too!”, ou “Fazendas aqui. Florestas aqui também!”. Por enquanto, ainda estamos com a faca e o queijo na mão.

*Paulo Groke é engenheiro florestal e diretor superintendente do Instituto Ecofuturo, organização sem fins lucrativos mantida pela Suzano.

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