Multas tributárias e o Tema 863: mais uma modulação controversa?

Por Rafael Pandolfo, advogado, doutor em Direito Tributário e Coordenador técnico do programa Resgate-RS*

As multas tributárias qualificadas são aquelas aplicadas em caso de fraude, sonegação ou conluio. No Tema 863 da Repercussão Geral (RE 736.090), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que tais multas limitam-se ao percentual de 100%, a incidir sobre o montante do crédito tributário, podendo chegar a 150% em caso de reincidência.

Percentuais superiores a esses foram declarados confiscatórios e, portanto, inconstitucionais, nos termos do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, há muito aplicado pelo Supremo em matéria de multas tributárias (ADI 551/RJ). Ademais, apesar de a controvérsia ter chegado ao STF em razão de uma multa qualificada da União, esses percentuais deverão ser observados, a partir de agora, não apenas pela União, mas também pelos estados e municípios.

Esse desfecho era aguardado, tendo em vista a recente jurisprudência da Corte e as disposições da Lei nº 14.689/2023. O que demanda maior atenção são os critérios adotados na modulação de efeitos da decisão. Cabe lembrar que a modulação de efeitos faz com que a declaração de inconstitucionalidade não tenha o seu efeito temporal típico, ou seja, a eficácia retroativa (ex tunc). Com a modulação, a decisão vale prospectivamente (ex nunc) ou a partir de outro momento delimitado pela Corte.

No caso do Tema 863, houve unanimidade, tanto no mérito quanto no ponto a respeito da modulação, que assim ficou definida: “A decisão produzirá efeitos a partir da data da edição da Lei nº 14.689, de 20.09.2023. Para as multas tributárias qualificadas aplicadas antes dessa data, devem-se observar os percentuais máximos estabelecidos na lei de cada ente, com duas exceções: (i) as ações judiciais e os processos administrativos pendentes de conclusão até a referida data; e (ii) os fatos geradores ocorridos até a referida data em relação aos quais ainda não tenha havido o pagamento da multa. Nessas duas situações, vale o limite de 100% (ou de 150%, no caso de reincidência)”.

A modulação promovida pelo Supremo parece seguir a lógica do artigo 106, inciso III, do Código Tributário Nacional, uma vez que reconheceu a aplicação retroativa do percentual de 100% para as multas qualificadas superiores a esse patamar que não foram adimplidas até 20 de setembro de 2023 (data da edição da Lei nº 14.689/2023, a qual foi tomada como marco da modulação porque instituiu, no âmbito federal, os mesmos limites delineados pelo STF). Quer dizer, como não houve o pagamento até a referida data, deve ser aplicada retroativamente a punição mais favorável. Nesse ponto, andou bem a decisão, que ainda determinou o respeito a tais limites e datas a todos os entes tributantes, até que o Congresso Nacional aprove lei complementar para regulamentar o tema em todo o país.

Por outro lado, também é possível criticar a modulação realizada pelo STF. Em primeiro lugar, porque foram chanceladas multas qualificadas confiscatórias, já pagas, anteriores à Lei nº 14.689/2023. Em segundo lugar, porque foram prejudicados, com a modulação, os contribuintes que pagaram as suas multas antes do marco modulatório, ou aqueles que integraram litígios tributários de rápida resolução.

Ora, se desejamos um sistema tributário com baixa litigiosidade, os contribuintes em dia com os seus deveres fiscais não podem ser prejudicados em relação aos contribuintes litigantes ou inadimplentes.  Esse é um cuidado que a modulação sempre precisa ter: beneficiar a boa-fé e todos os demais valores que se pretende consolidar no ordenamento jurídico. Não se pode beneficiar um espírito litigioso vazio, nem a inadimplência.

Ao se validar as multas confiscatórias no caso de quem foi diligente e pagou seus débitos, ou de quem cooperou com a exação fiscal, ou, ainda, de quem foi parte de um processo mais eficiente, valida-se um sistema jurídico que prejudica quem deveria ser beneficiado e beneficia quem deveria ter as suas condutas reprovadas pelo sistema de justiça. Se queremos uma reforma tributária que consolide uma sociedade cooperativa com a consequente diminuição do litígio, não podemos adotar critérios de modulação contrários a isso.

Portanto, o critério mais justo e isonômico seria garantir àqueles que contestaram a multa confiscatória à época e que acabaram pagando-a, possam, agora, repetir o valor pago a maior, diante da decisão do STF que reconhece haver confisco em multa punitiva superior a 100%.

Com a publicação do acórdão nas próximas semanas, será aberto o prazo para oposição de recurso às partes do processo. Dessa forma, por meio de embargos de declaração, ainda é possível, em tese, a modificação do entendimento, embora isso seja improvável em razão da unanimidade dos votos.

Sendo assim, tudo se encaminha para três possíveis cenários aos contribuintes:

(1) as multas tributárias qualificadas inadimplidas deverão seguir os percentuais definidos pelo STF, seja a multa anterior ou posterior à Lei nº 14.689/2023;

(2) as multas qualificadas superiores ao percentual de cem por cento e pagas antes de 20 de setembro de 2023 (data da edição da Lei nº 14.689/2023) não poderão ser restituídas; e

(3) as multas qualificadas superiores ao percentual de cem por cento que foram pagas após 20 de setembro de 2023 – seja a multa anterior ou posterior à Lei nº 14.689/2023 –, ou as que eram objeto de contestação nessa data poderão ser restituídas.

Enfim, trata-se de importante decisão da Corte Suprema, que deverá ser observada por todos os contribuintes, pelos demais órgãos decisórios e por todos os entes federativos (União, estados e municípios). Passada a turbulência inicial que toda a modulação de efeitos gera, fica um importante precedente que limita e orienta a atuação estatal em matéria de direito tributário sancionatório de agora em diante.

*Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, Rafael Pandolfo é coordenador geral e sócio-fundador da Rafael Pandolfo Advogados Associados. Também atua como coordenador do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) de Porto Alegre e todo o RGS. Professor Conferencista do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) em todo o Brasil. Membro da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB. Conselheiro de Assuntos Técnicos, Tributários e Legais (CONTEC/FIERGS). Consultor da Federação do Comércio de Bens e Serviços (FECOMÉRCIO). Conselheiro Editorial da Fundação Escola Superior de Direito Tributário (FESDT). Membro do Instituto de Pesquisas Tributárias (IPT). Membro do Instituto de Estudos Tributários (IET). Membro da Fundação Escola Superior de Direito Tributário (FESDT). Autor de diversos artigos e livros. Palestrante em diversas instituições.

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