Dom aperfeiçoado

“Minha vida é a história de meu envolvimento com fios. Poucos anos após o corte daquele, umbilical, que me ligava à mãe, as vizinhas já se espantavam pela familiaridade com que manejava agulhas e novelos.” Esta é Nara Guichon, uma empreendedora apaixonada pelo ofício de tecer fios e costurar tecidos manualmente. O texto acima é como a tecelã e designer se apresenta em seu portal na web. O talento para transformar fios em peças de lã começou cedo. A habilidade em vendê-los também. As primeiras peças – um casaquinho e sapatinhos de bebê – foram vendidas aos nove anos. Como não tinha mesada, o jeito que encontrou para comprar seus próprios novelos de lã foi poupar o dinheiro que lhe davam para a passagem de ônibus. Foram os primeiros passos de uma trajetória que transformou Nara numa das maiores e mais criativas tecelãs do Brasil.

Seu trabalho já foi premiado com uma menção honrosa no renomado concurso de design do Museu da Casa Brasileira, de São Paulo. Em 2009, a bolsa Farta, elaborada pela artesã a partir da reciclagem de velhas mas resistentes redes descartadas por pescadores, foi selecionada para fazer parte da Bienal do Design Brasileiro 2010, em Curitiba. Em abril deste ano, a mesma bolsa foi exposta na mostra “Brasil: design, inovação e sustentabilidade – Um olhar sobre a Bienal Brasileira de Design 2010”, durante o Design Week de Milão, na Itália, evento que acontece paralelamente ao Salão Internacional do Móvel de Milão.

A habilidade em reaproveitar materiais inusitados e descartados como lixo é um dos diferenciais do trabalho de Nara. Tanto que ela se tornou referência quando o assunto é design sustentável. Nas mãos da tecelã, as redes de pesca de poliamida que são abandonadas na praia – e que representam uma ameaça aos animais marinhos – se transformam em preciosa matéria-prima. E ao contrário do que muita gente pode pensar, trata-se de um material resistente que imprime qualidade, além de um tom de exclusividade às peças. A inspiração veio do amigo artesão Henrique Schuck­mann. Foi ele que, em 1998, mostrou a Nara as possibilidades criativas do uso de redes de pesca no artesanato.

Quem vê o estado em que as redes chegam ao ateliê de Nara custa a acreditar que aquele emaranhado de fios sujos serve para alguma coisa. Mas após um cuidadoso processo de limpeza e tratamento, as redes se juntam a lãs, sedas, ramis e linhos para compor roupas, bolsas, lenços e artigos de decoração como mantas e capas de almofadas. É um trabalho de muita paciência e dedicação. Duas características que não faltam a Nara. Desde que adquiriu seu primeiro tear manual, há cerca de 30 anos, a tecelã faz questão de realizar todo o processo de manufatura da lã. Por isso, ela compra a lã bruta, lava, carda e fia. O objetivo é valorizar cada etapa de transformação do material.

Cooperar com a preservação ambiental é uma preocupação presente em todo o trabalho de Nara. A artesã aproveita a coloração natural impressa nas redes pelo tempo e pelas intempéries. Para tingir a lã que compra diretamente dos criadores de ovelhas, utiliza corantes naturais como casca de cebola, semente de urucum e eucalipto. Nara também só compra lã depois de se certificar que a tosa dos merinos é feita sem agredir os animais. As peças de patchwork levam tecidos reciclados de alta qualidade, grande parte doada por empresas têxteis e lojas especializadas. A artesã ressalta que sua preocupação é com a qualidade do produto porque um dos seus objetivos é fortalecer o consumo de peças de longa duração em detrimento da cultura do descartável.

Desta forma, a artesã espera que suas criações sejam valorizadas principalmente pela qualidade, beleza e atemporalidade, já que em seu método de produção uma peça nunca é igual a outra. Nara cria em média uma nova peça por semana que passa, então, a ser manualmente produzida em tiragens limitadas com a ajuda de dez colaboradoras – costureiras, bordadeiras e tecelãs que, em sua maioria, são mulheres de comunidades pesqueiras de Florianópolis que fazem do artesanato uma importante fonte adicional de renda para suas famílias. Aliás, manter viva a cultura do trabalho manual é um dos objetivos de Nara, cuja infância foi rodeada de agulhas e novelos que em mãos habilidosas davam forma a gorros e ponchos que ajudavam a aplacar o frio do Sul do Brasil.

Trajetória

Nascida em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Nara passou parte da infância e da juventude em Porto Alegre. Aos 17 anos vendia casacos de lã colorida, no estilo conhecido como jacquard, para butiques da cidade, além de pães integrais feitos por ela mesma. Paralelamente, Nara ajudava a administrar a farmácia da família. De personalidade inquieta, no final da década de 1970 – com 20 e poucos anos de idade –, Nara decidiu largar tudo e viajar para a Europa. “Um dia eu pensei: não vou ficar a vida inteira aqui infeliz.” Ao final de dois anos de andanças pelo velho continente, grande parte na França e na Itália, voltou a Porto Alegre onde montou com dois amigos um restaurante especializado em comida vegetariana.

Pouco depois, durante um Carnaval chuvoso em Florianópolis, se encantou com uma casa cercada por mata atlântica na comunidade de Costa de Dentro, no interior da Ilha. “Lembro como se fosse hoje. O chão estava coberto de borboletas azuis e as cigarras cantavam tão alto que não era possível ouvir mais nada. No mesmo dia olhei outras sete casas, mas não conseguia tirar a primeira da cabeça”, conta Nara. Para comprar o sítio junto com a irmã, vendeu todo o estoque da farmácia em Porto Alegre. No local, montou o ateliê Nara Guichon Têxtil, onde há 30 anos produz e vende suas peças, especialmente para os turistas que frequentam Florianópolis no verão. Os artigos também são comercializados pela loja virtual.

A casa na Costa de Dentro é seu porto seguro. De lá só sai para suas frequentes incursões pelo mundo da tecelagem. Recentemente, passou três meses em Londres visitando feiras do setor. Em meados de julho voltou para a cidade, onde mantém uma máquina de costura. Em outubro vai participar da maior feira de tricô da Europa, a Knitting and Stiching Show. “Só viajo para cidades que tenham algo a ver com o segmento têxtil”, afirma. Desde 1983, faz duas viagens para São Paulo com as malas cheias de sua produção. Os artigos são vendidos para um grupo de clientes fiéis. Assim, de uma forma tranquila, Nara cumpre sua missão de perpetuar técnicas ancestrais de produção têxtil – sem deixar de adicionar elementos novos ao ofício. 

Nara Guichon

Ateliê Nara Guichon
Costa de Dentro – Pântano do Sul – Florianópolis
Técnicas utilizadas: Tecelagem manual, tricô, patchwork, costura
Produtos: Artigos de vestuário (blusas, vestidos), acessórios (echarpes, lenços, bolsas) e peças de decoração (tapetes, mantas, jogos americanos, cortinas, almofadas)
Matéria-prima: Lã, linho, rami, algodão, redes de pesca, miçangas de madeira, sementes, conchas e resinas
Colaboradoras: Dez artesãs, entre bordadeiras, costureiras e tecelãs de Santa Catarina e Minas Gerais
Loja virtual: www.naraguichon.com

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