Por Renato Dolci, Diretor de Dados e Analytics da Timelens*
O vídeo “Adultização”, do Felca, tirou um espinhoso tema do subsolo e colocou no centro da conversa. Nas primeiras 24 horas após a divulgação, foram cerca de 797 mil menções nas redes; o acumulado já supera 5 milhões de menções. No YouTube, o vídeo está com aproximadamente 41 milhões de visualizações. O debate impactou cerca de 86 milhões de usuários únicos.
Do lado institucional, a Câmara pautou projetos de proteção de crianças e adolescentes nas redes e instalou um grupo de trabalho; do lado da tecnologia, redes como Google e Meta indicaram que vão reforçar suas políticas relacionadas a conteúdo infantil; do lado judicial, 233 perfis do X foram acionados por calúnia e difamação, com decisões para identificação, retratações e doações de R$ 250. O sentimento sobre o vídeo de Felca foi majoritariamente favorável à denúncia (88%), com um bloco crítico pouco relevante (4%) que associa o tema a riscos para a liberdade de expressão.
Na manhã de 15 de agosto de 2025, o influenciador Hytalo Santos foi preso em São Paulo em operação do Ministério Público da Paraíba, e perfis seus foram suspensos por decisão judicial — um desdobramento que mostra como a repercussão já saiu das redes para ações práticas, mostrando a relevância do influenciador Felca e excelência na construção de sua denúncia.
Mas gostaria de ir mais longe no assunto, até por ter me dedicado nos últimos anos a produzir algumas pesquisas sobre o mesmo. Não é um problema que nasceu ontem, nem que se resolve olhando só para grandes vitrines de produtores de conteúdo que exploram crianças em contextos sexuais à céu aberto. Ele começa dentro de casa e atravessa todas as idades e classes sociais. É um fenômeno difícil de mapear no cotidiano, e os indicadores de base ajudam a explicar por quê.
A Timelens, em estudo publicado junto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que 83% das crianças e adolescentes no Brasil já têm perfil em alguma rede social e que, entre 15 e 17 anos, o índice chega a 99%. O acesso é quase todo por celular (97,8%) e 81% têm aparelho próprio; 35% usam em ambiente privado, sozinhos. Mesmo quando há bloqueio, 45% dizem que continuariam usando a internet. O relatório registra ainda que crianças trocam entre si instruções para desativar a moderação dos pais.
A linguagem dominante desse consumo é audiovisual. Plataformas de vídeo são as mais usadas entre os mais novos, com YouTube, Kwai e TikTok na dianteira, enquanto redes textuais têm participação ínfima nessa faixa etária. Isso importa porque os algoritmos priorizam o que retém atenção e provoca reação. Em outras palavras, conteúdos que chocam ou inflamam tendem a subir de posição e a permanecer mais tempo nas telas infantis e adolescentes. O YouTube afirmou ter removido 18,8 milhões de vídeos por segurança infantil em 2024.
A adultização não é só sexual. As principais pesquisas de uso infantil no Reino Unido indicam exposição ampla a conteúdos potencialmente nocivos: 32% dos jovens de 8–17 anos viram “algo preocupante ou agressivo” no último ano; 31% já sofreram bullying por meios digitais. Entre meninas de 16–18 anos, a exposição a convites para conteúdos íntimos é maior do que entre meninos, o que reforça vulnerabilidades gigantes entre adolescentes, convites que ocorrem sem precisar nem sair de casa.
A vitrine criminal que estoura nos trending topics é só a ponta. O volume que mais preocupa acontece no miúdo do quarto: contas paralelas, identidades falsas, exploração velada e grooming que se apoiam em anonimato e no uso solitário dos aparelhos. O mesmo estudo da Timelens registra a migração do conteúdo de ódio das camadas fechadas para as redes abertas: em 2023, 90% circulavam na deep web; em 2025, o índice caiu para 78%. Na mesma janela, as postagens com ameaças a escolas cresceram 360% em quatro anos e já somavam mais de 88 mil até 21 de maio de 2025.
Após ataques, a proporção de elogios ao agressor subiu de 0,2% em 2011 (Realengo) para 21% nos eventos de 2025; no episódio de 8 de maio, foram 27,1% de menções positivas. Esses números não falam só de violência; descrevem um ecossistema de atenção em que crianças circulam e aprendem códigos sem testemunha adulta.
A exposição vem antes da produção. Relatórios internacionais mostram que uma parte crescente do material de abuso infantil removido da internet já é “autogerado” por crianças e adolescentes, em geral sob coerção ou grooming. O pior de tudo? Os pais nem sonham. Em 2024, a Internet Watch Foundation analisou mais de 424 mil denúncias e confirmou 291.273 páginas com abuso; 91% eram conteúdo autogerado, um salto que indica que os jovens não apenas consomem, mas também produzem conteúdo por pressão de pares ou aliciadores em ambientes privados e de curta duração.
Quando você junta esses vetores com o dado já consolidado de que a maioria das crianças navega por vídeo e no celular próprio, muitas vezes sozinha, a linha se completa: primeiro a exposição a sexualidade explícita, violência, armas e ódio; depois a replicação como performance ou “desafio”; por fim, a produção em contas paralelas que passam por baixo do radar e sob chantagem na maioria dos casos. É a natureza do digital aberto e pouco mediado que permite esse ciclo. O caso Felca expõe a vitrine, mas os números acima explicam o subsolo. A discussão explodiu para fora — mas pouco se perguntou para dentro: o que o meu filho vê/faz na internet?
A resposta que os dados sugerem não é vigiar tudo, nem tratar o problema como se estivesse “lá fora”. É reconhecer que a referência das crianças nasce do que consomem e produzem online, dentro de casa, e que o risco está justamente onde os adultos veem menos. O resto é método, rotina e presença.
*Renato Dolci é cientista político (PUC-SP) e mestre em Economia (Sorbonne). Atua há mais de 15 anos com marketing digital, análise de dados e pesquisas públicas e privadas de comportamento digital. Já desenvolveu trabalhos em diversos ambientes públicos e privados, como Presidência da República, Ministério da Justiça, FIESP, Banco do Brasil, Mercedes, CNN Brasil, Disney entre outros. Foi sócio do BTG Pactual e atualmente é diretor de Dados e Analytics na Timelens, CRO na Hike e CEO na Ineo.