Por Ana Carolina Peuker, doutora em psicologia e CEO da Bee Touch*
A ideia de uma “saúde social” tem ganho destaque nos últimos dias. Na abertura do SXSW 2025, Kasley Killam trouxe à tona a importância das conexões humanas, destacando que a saúde social é um alicerce fundamental para o bem–estar. Em um mundo digitalizado, as relações humanas genuínas, que ela descreve como “musculatura social”, tornam-se essenciais. Porém, me questiono: será que estamos realmente criando uma nova categoria de saúde ou apenas resgatando algo que sempre foi essencial, mas negligenciado?
O conceito de saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), vai além da simples ausência de doenças, englobando um estado de bem–estar físico, mental e social. A qualidade de vida, por sua vez, está intrinsecamente relacionada a essa visão ampliada de saúde, refletindo a capacidade do indivíduo de viver de forma satisfatória e com condições de alcançar seu potencial pleno. O que a OMS nos aponta é que saúde e bem–estar não podem ser dissociados das condições sociais em que as pessoas vivem. Portanto, falar em “três tipos de saúde” — física, mental e social — é um entendimento simplificado de um conceito mais profundo.
O bem–estar humano envolve pelo menos oito dimensões interconectadas: física, emocional, social, ocupacional, intelectual, ambiental, financeira e espiritual. A saúde social não é um “adicional” que possa ser desconsiderado, mas um pilar fundamental do bem–estar como um todo.
A meta-análise Social relationships and mortality risk: A meta-analytic review (Holt-Lunstad, Smith & Layton, 2010) revisou 148 estudos, abrangendo mais de 300 mil pessoas, e revelou que laços sociais fortes aumentam em 50% as chances de sobrevivência a longo prazo. O estudo também mostrou que o isolamento social tem um impacto negativo tão significativo quanto fatores de risco como o tabagismo e a obesidade. Isso não é novidade; o que mudou é o agravamento da solidão na era digital. O distanciamento das interações presenciais, aliado ao aumento da superficialidade nas relações mediadas pelas redes sociais, vem acelerando o isolamento social.
Essa desconexão social não só afeta a saúde mental, mas também a saúde física e o comportamento. Os determinantes sociais da saúde, como propõe a OMS, incluem fatores como o acesso à educação, à renda, à saúde, ao ambiente de trabalho e à participação social. A falta de conexões reais e profundas, portanto, configura-se como um determinante negativo para a saúde, comprometendo a qualidade de vida e ampliando desigualdades.
O paradoxo contemporâneo é claro: estamos mais conectados do que nunca, mas também mais sozinhos. Redes sociais, que deveriam promover a proximidade, muitas vezes operam como “calorias vazias”, rápidas e viciantes, sem o valor “nutritivo” das interações autênticas. Estamos cada vez mais confinados em bolhas, interagindo apenas com quem compartilha nossas opiniões e visões, o que limita nossa capacidade de aprender com diferentes perspectivas e nos isola em um mundo de visão estreita.
De acordo com a pesquisa The growing loneliness epidemic (Cigna, 2020), 61% dos adultos se sentem solitários com frequência, um aumento significativo em relação aos anos anteriores. Esse isolamento social afeta diretamente a saúde mental, mas também prejudica a economia, aumentando custos com afastamentos e problemas de saúde relacionados ao estresse. O problema não é novo, mas a forma como a sociedade lida com ele exige uma reflexão mais profunda sobre o impacto das conexões humanas.
Relações humanas de qualidade não surgem por acaso; elas exigem esforço ativo para ouvir o outro, compreender diferentes pontos de vista e interagir de forma autêntica. Estudos em neurociência comprovam que a curiosidade ativa áreas do cérebro ligadas à memória, ao aprendizado e à empatia, aprofundando as conexões sociais e melhorando a qualidade das interações.
O risco do atual “buzz” em torno da saúde social é tratá-la como uma tendência passageira. Na realidade, o que estamos vendo é uma reafirmação daquilo que sempre foi essencial para o bem–estar humano. A saúde social não é um “novo tipo de saúde”, mas uma dimensão central da qualidade de vida, que deve ser reconhecida e cultivada. Ignorar isso é negligenciar os determinantes sociais da saúde, que já demonstraram ser fundamentais para a manutenção de nossa saúde física e mental.
Se as redes sociais são calorias vazias, então as interações autênticas, baseadas em escuta ativa e curiosidade genuína, são o alimento de que precisamos. Isso começa com um movimento simples: sair das bolhas, abrir espaço para a diversidade de ideias e cultivar relações verdadeiras. A saúde social é, sem dúvida, uma dimensão central do bem–estar, que nunca deveria ser vista como algo acessório, mas como um aspecto central para uma vida plena e saudável.
*Além de fundadora e CEO da Bee Touch, deeptech pioneira no uso de métodos digitais para a avaliação de riscos psicossociais, Ana Carolina Peuker é PhD e pós-doutora em Psicologia, foi professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Referência em saúde mental no trabalho, é diretora de Mercado e Expansão da ABQV e conselheira do Movimento Mente em Foco do Pacto Global da ONU.