Atender necessidades de etnias é um mercado promissor, mas delicado

Atender necessidades de etnias é um mercado crescente e promissor, mas altamente delicado

Com mais de 188 milhões de habitantes, o Brasil é mundialmente conhecido pela miscigenação de povos e culturas. Negros, asiáticos, árabes e judeus estão entre as etnias que mais se sobressaem – e que representam nichos de mercado em crescente expansão. De olho nessa tendência, empresas de todo o País buscam identificar e atender às necessidades destes públicos. O interesse vai de comidas especialmente preparadas a cosméticos, passando por agências de turismo e veículos de comunicação, como os jornais em línguas estrangeiras. Mas, antes de apostar em produtos e serviços voltados a uma determinada etnia, é preciso investir em pesquisa e planejamento minuciosos, uma vez que qualquer gafe pode comprometer – para sempre – a credibilidade do negócio.

O boom do chamado mercado étnico teve início com a globalização, no fim dos anos 1980, e ganhou força a partir dos anos 2000, sobretudo devido ao avanço da internet, que facilitou a divulgação e a aproximação entre empresas e consumidores de qualquer parte do mundo. Na opinião de Wlamir Bello, consultor empresarial do Sebrae/SP, apostar nesses nichos é uma excelente opção para se diferenciar no mercado, principalmente para pequenas e médias empresas. “Só há vantagens nessa segmentação. Afinal, quem quer vender para todos acaba não vendendo para ninguém”, atesta.

A principal vantagem, segundo o consultor, é a diferenciação. “Produtos e serviços estão se tornando commodities, está tudo muito parecido, então sai na frente quem tiver algum ponto forte inconfundível e, neste caso, as etnias representam oportunidades promissoras.” Em consequência da segmentação, diminui a concorrência ao mesmo tempo em que aumenta o poder de negociação com os fornecedores. O prazo de retorno do investimento também costuma ser menor em empreendimentos étnicos. “Como a identificação com o público-alvo é mais instantânea, o retorno tende a ser, senão mais rápido, pelo menos mais visível do que nas demais empresas.”

Quem investe no mercado étnico pode ainda se dar ao luxo de fugir da guerra de preços tão característica do varejo atual. “Ainda há uma carência de produtos e serviços para etnias específicas – principalmente negros, judeus e muçulmanos. Então, quando você lança um determinado produto que vai ao encontro das necessidades destes consumidores, eles estão menos sensíveis ao preço, até mesmo porque não há muitas opções no mercado”, explica Bello.

Mas, se por um lado os nichos étnicos facilitam a identificação com o cliente, por outro também são maiores os riscos de comprometer a credibilidade da empresa, uma vez que envolvem questões culturais ou religiosas. “Os clientes são mais sensíveis, então é preciso estudar a fundo todos os aspectos do público-alvo para não cometer nenhuma gafe, principalmente se o empreendedor em si não for um representante legítimo da etnia em que pretende investir”, recomenda Bello.

Para garantir a entrada correta nestes mercados, portanto, é necessário incorporar novos hábitos e costumes à cultura da empresa. “Não adianta querer fazer produto para mulher sem ter mulheres na equipe, da mesma forma com as etnias. É preciso ir a campo, vivenciar os costumes de forma objetiva para identificar as necessidades do cliente”, afirma Giancarlo Tadeu Alcalai, professor de gerência multicultural do curso de Relações Internacionais da ESPM-SP. “Grandes empresas como Sadia e Perdigão, que se destacam pela exportação para os países árabes, entre outros, incorporaram os rituais necessários ao processo de produção”, exemplifica o professor, referindo-se aos procedimentos de abate utilizados em carnes com certificação halal. Por isso, a dica é criar um “comitê étnico” dentro da empresa, composto por representantes das etnias em questão – o que pode incluir a presença de entidades como rabinos ou sacerdotes muçulmanos.

Halal

Em árabe, a palavra halal significa “permitido” e se refere aos comportamentos, vestimentas e alimentos autorizados pela religião islâmica. Em números, os produtos com certificação halal respondem por uma fatia no mercado global estimada em US$ 2 trilhões – sendo US$ 1 bilhão apenas no Brasil, de acordo com dados da Federação das Associações Muçulmanas. São alimentos industrializados, carnes, cereais e grãos in natura, cosméticos, produtos de uso pessoal e medicamentos preparados de acordo com os preceitos do Alcorão, representando um segmento que deve fechar 2010 com crescimento de 15%.

“A população islâmica já ultrapassa 1,8 bilhão de consumidores em todo o mundo e a demanda é grande por alimentos, desde biscoitos e massas até balas, chás e castanhas. Enfim, há mercado para todos os alimentos que tiverem selo halal”, afirma Chaiboun Ibrahim Darwiche, especialista em alimentos halal do Siil (Serviço de Inspeção Islâmica), empresa responsável pela certificação de companhias com foco nesse mercado.

Outro fator que contribui para a expansão de horizontes das empresas brasileiras interessadas em exportar é que 300 milhões de muçulmanos vivem em países onde o islamismo não é a religião majoritária. Estima-se que o Oriente Médio concentra apenas 20% da população islâmica mundial, sendo que a maioria – 60% – está concentrada na Ásia. “Os produtos halal são comercializados hoje em 112 países, e pesquisas apontam que muitos outros consumidores não-muçulmanos também escolhem produtos certificados por acreditar que o selo garante segurança alimentar”, completa Darwiche.

Foi justamente por conta da demanda dos clientes japoneses que a torrefação Café Tijuco Preto, localizada no sul de Minas Gerais, buscou a certificação halal em 2008. “Começamos a exportar para o Japão e identificamos essa demanda pelos produtos halal”, comenta Antônio Márcio Pereira de Castro, proprietário da empresa. “No caso do café, as exigências dizem respeito à proibição de determinados fertilizantes, além da regularização da empresa nos âmbitos trabalhista e legal”, completa. Hoje, cerca de 10% da produção de café em grãos é destinada ao mercado externo, sendo a maioria para o Japão e o restante para países árabes como Líbano, Kuwait e Jordânia, além de Estados Unidos e Europa.

Na opinião de Darwiche, a certificação halal é sinônimo de maior valor agregado aos produtos como um todo. “Alguns dos benefícios são oferecer diferencial na abertura de novos mercados; processos e resultados mais eficazes segundo as normas halal, maior consciência e possibilidade de rastreamento dos produtos e serviços; atrair novos investimentos com melhoria da reputação da marca e remoção de barreiras comerciais.” Foi o que aconteceu com o Café Tijuco Preto, que não só passou a ter maior lucratividade após a certificação como também aprimorou a produção da companhia em geral. “Passamos a ter uma organização maior no ambiente de trabalho, o que consequentemente aumentou a eficiência dos processos e a qualidade dos nossos produtos”, diz Castro.

No caso das carnes, a certificação halal é mais específica e inclui regras para o abate dos animais, que devem ser sacrificados em um golpe só de faca no pescoço, com a cabeça virada em direção à Meca. “A morte deve ser instantânea, pois o animal não pode sofrer e deve ficar suspenso até que escorra todo o sangue, que para os muçulmanos é visto como um líquido portador de doenças”, explica Mohamad Moussa, proprietário da Casa Líbano, primeira rede de restaurantes halal de São Paulo.

Há quase quatro décadas no Brasil, Moussa é o típico exemplo de empreendedor que decidiu investir movido por uma necessidade própria. Nascido no Líbano, ele sentia dificuldade de encontrar açougues e restaurantes especializados em carne halal na cidade de São Paulo. Foi por esse motivo que, em 2002, ele decidiu abrir a Casa Líbano em parceria com a esposa, Hanie, e o filho, Hassan. Para garantir a procedência das carnes, é o próprio Moussa que supervisiona o abate dos animais e cuida para que tudo seja feito dentro da lei islâmica. Outro diferencial do restaurante é a ausência de bebidas alcoólicas no cardápio por conta das normas religiosas.
Com três operações na capital paulista – incluindo dois restaurantes e a unidade de tele-entrega – Moussa pretende continuar a expansão através do sistema de franquias. “Já estamos com duas negociações em vista, inicialmente em São Paulo”, afirma o empresário. “Nossa clientela é fiel, por isso o crescimento tem sido constante. Além de brasileiros muçulmanos ou não, atendemos principalmente muitos estrangeiros que buscam comida halal, entre europeus, norte-americanos, coreanos, iraquianos, indonésios, etc.”, relata.

Kosher

Outro segmento étnico em expansão no País – e no mundo – é o dos produtos kosher, elaborados segundo as normas da religião judaica. De alimentos a utensílios domésticos, o mercado kosher movimenta segmentos diversos da indústria e do varejo. No Brasil, estima-se que haja quase 200 mil adeptos do judaísmo que consomem estes itens, a maioria concentrada nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre.

“A procura por produtos kosher vem crescendo no Brasil, principalmente nos últimos 25 anos”, informa Alcalai. “São mais de 2,5 mil itens certificados que entram no mercado brasileiro todos os anos, é algo que não pode ser ignorado”, completa. Segundo o professor, não são apenas os judeus que consomem os produtos kosher no Brasil. “Há outros consumidores religiosos, caso dos adventistas de Sétimo Dia, que também não consomem determinados tipos de alimentos e acabam buscando esses alimentos”, explica Alcalai.

Para atender a esta demanda, a rede de franquias Mundo Verde incluiu no mix uma série de alimentos kosher. A linha inclui achocolatados, cereais, sucos, pães e massas certificados, entre outros. “A demanda tem grandes diferenças regionais e varia até mesmo entre bairros, conforme a comunidade judaica local e o conhecimento das pessoas sobre produtos kosher”, analisa Donato Ramos, diretor de marketing e recursos humanos da Mundo Verde.

Conforme o executivo, a ideia de investir no segmento kosher também surgiu por estar de acordo com a proposta da rede, especializada no comércio de produtos naturais e orgânicos. “A qualidade nutricional e os métodos de produção dos produtos kosher estão alinhados com o propósito da empresa de oferecer qualidade de vida e bem-estar para os consumidores.”

Entre outras exigências, os produtos kosher passam pela fiscalização de um rabino – especialmente as carnes, que também incluem um ritual próprio para abate. Além disso, os itens certificados têm a garantia da não-adição de carne de porco e passam por um rigoroso processo de seleção que analisa a origem e o estado de saúde dos animais, assim como a procedência das matérias-primas utilizadas.

Se em São Paulo o mercado kosher é mais desenvolvido, o mesmo não pode ser dito sobre as demais regiões do País. Foi para suprir a demanda dos familiares e amigos que o jornalista José Roitberg deu início à operação da Chaidelly, loja especializada em alimentos, utensílios e acessórios judaicos localizada no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. “Há uma falta absoluta de opções kosher no Rio de Janeiro. Quando abrimos, havia apenas duas lojas, sendo um representante do frigorífico paulista Mehadrim – o principal do Brasil no segmento – e outra casa de carnes e preparo de alimentos”, diz o empresário, que comemora um ano de inauguração da loja neste mês de novembro.

De lá para cá, o ponto de venda tem se tornado cada vez mais especializado no segmento kosher. Se no início Roitberg planejou o mix para conter um terço de itens kosher e dois terços compostos por produtos de delicatessen convencionais, hoje a situação praticamente se inverteu. “Hoje tenho 50% de mercadorias kosher, 25% judaica não-kosher e 25% convencional”, conta. O crescimento da linha certificada se deu conforme o aumento da demanda, sempre em alta. “A linha kosher responde hoje por 60% do meu faturamento, enquanto a linha judaica equivale a 25%”, diz o lojista.

Entre os itens kosher oferecidos pela Chaidelly estão, além de diversos cortes de carnes, salsichas, salames, kits para feijoada, chocolates, vinhos, laticínios e doces. Há ainda uma linha de utensílios que inclui velas, sabão para louças, candelabros e outros elementos litúrgicos. Itens mais inusitados – como palitos de dente kosher e peças de artesanato trazidas de Jerusalém – completam o mix, composto, em sua maioria, por produtos importados. “Todas as carnes, queijos e leite kosher colocados na loja são rapidamente vendidos”, diz Roitberg.

Afro

A julgar pelos números, investir em produtos e serviços para a população negra é lucro certo. De acordo com a Afrobras (Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Cultural), a população de afrodescendentes corresponde a 48% do total de cidadãos e o Brasil está entre os países com maior concentração de pessoas desta etnia. Além disso, o aquecimento da economia do País nos últimos anos tem provocado mudanças marcantes na sociedade brasileira, como a ascensão da classe C e o aumento da participação dos negros no mercado de consumo.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), mais da metade dos negros brasileiros (53,5%) pertence hoje à classe média. Entre os 10% chefes de família mais ricos do Brasil, estima-se que um a cada quatro seja negro ou mestiço. Para completar, a proporção de negros e mestiços entre os 1% de milionários brasileiros subiu de 9% para 15%, segundo o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets).

“Entre os negócios voltados para a comunidade negra, se destacam aqueles na área de beleza e cosméticos, além de design, produção visual com temática afro e confecção étnica”, enumera Giovanni Harvey, diretor-executivo da Incubadora Afro-Brasileira, primeira e única incubadora com viés étnico do Brasil. “Além do mercado de produtos e serviços específicos para a população afrodescendente, há toda uma gama de serviços universais no varejo que peca por não atender corretamente os clientes negros”, completa Harvey, referindo-se à discriminação que muitos negros ainda sofrem por parte de vendedores e atendentes mal treinados.

Potencial

Dos itens fabricados exclusivamente para negros, o grande destaque são os cosméticos e produtos de higiene pessoal. Segundo a Associação Brasileira de Indústria, Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), existe uma tendência de crescimento no segmento de produtos étnicos e o mercado brasileiro direcionado para este setor já provou que tem potencial.

Além de grandes empresas – como L’Oréal e Avon, que incluíram entre seus produtos linhas específicas para negras – há ainda marcas que se lançam com foco exclusivo no mercado étnico. É o caso da Kiva Cosméticos, que há cinco anos investe em uma linha de produtos voltada à pele negra e morena, composta por cremes e loções com efeito clareador, que têm o objetivo de evitar e combater as manchas típicas desse tipo de pele. “A linha Afro foi desenvolvida unindo biotecnologia aos ativos naturais da Amazônia, com foco nas mulheres de pele morena e negra que desejam clarear a pele ou as regiões mais escuras, como manchas e sinais, além de unificar a tonalidade e devolver a vitalidade e a maciez da mesma”, afirma Paula Sousa Ramos, diretora de mar­keting da empresa.

Com sede em Campinas (SP), a Kiva Cosméticos inicialmente direcionou a linha Afro ao mercado externo, com foco no público europeu e africano. “No exterior, a hidroquinona – substância química utilizada para clarear a pele – é proibida, então criamos um produto totalmente natural e com grande eficácia no clareamento”, explica Jimena Franco Carmello, responsável pela distribuição dos produtos no Brasil. Mas, há dois anos, a empresa decidiu investir no mercado interno, distribuindo os produtos por meio de venda direta porta a porta. “A recepção do público tem sido ótima, até porque não são só as negras e morenas que têm manchas. Temos vendido também para mulheres de pele branca e asiática, que também sofrem com manchas de sol, gravidez, estresse, etc.”, completa Jimena. Atualmente, a Kiva exporta aproximadamente 70% de sua produção, sendo os outros 30% direcionados ao mercado brasileiro.

Mercados étnicos

Vantagens
*diferenciação
*diminui a concorrência
*aumenta o poder de negociação com os fornecedores
*evita entrar em guerras de preços
*prazo de retorno do investimento menor
*certificações halal e kosher são vistas também como garantia de segurança alimentar

Riscos
*qualquer gafe pode comprometer – para sempre – a credibilidade do negócio
*discriminação dos clientes por parte de vendedores e atendentes mal treinado

Cuidados
*é preciso investir em pesquisa e planejamento minuciosos
*incorporar novos hábitos e costumes à cultura da empresa
*ir a campo, vivenciar os costumes de forma objetiva para identificar as necessidades do cliente
*criar um “comitê étnico” dentro da empresa, composto por representantes das etnias em questão

Contatos:

Café Tijuco Preto: www.tijucopreto.com
Casa Líbano: www.casalibano.com.br
Chaidelly: http://chaidelly.com
Espm: www.espm.br
Kiva Cosméticos: www.kivacosmeticos.com.br
Incubadora Afro-Brasileira: www.ia.org.br
Mundo Verde: www.mundoverde.com.br
Sebrae/SP: www.sebraesp.com.br
Siil: www.islamichalal.com.br

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