A declaração de pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde, somada a uma série de medidas governamentais de suspensão de atividades, de quarenta e de isolamento social, que impactam diretamente na capacidade das empresas cumprirem suas obrigações contratuais, levanta a seguinte questão: seria a pandemia uma razão suficiente para o término de contratos?
Em geral, quando ocorre a desistência de uma contratação antes do prazo final de vigência do contrato ou sem respeitar eventual aviso prévio nela previsto, a parte desistente fica sujeita a uma série de penalidades, como pagamento de multa, devolução de valores e indenização, dentre outras.
Embora os contratos sejam lei entre as partes e devam ser cumpridos tal como acordado entre elas, o Direito garante algumas ferramentas jurídicas excepcionais para rescindi-lo unilateralmente antes do seu fim, sem penalidades, ou para buscar sua repactuação, de modo a restabelecer o equilíbrio da relação e, ainda, evitar o enriquecimento sem causa de uma parte em detrimento da outra.
Para tanto, as condições em que os contratos foram inicialmente firmados precisam ter mudado substancialmente a ponto de causar um desequilibro entre as partes, tornando o cumprimento impossível ou oneroso demais para uma das partes ou para ambas.
A pandemia da Covid-19 deve ser reconhecida como caso de força maior, conforme previsto no artigo 393 do Código Civil, que dispõe que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Em síntese, eventos de força maior são aqueles eventos imprevisíveis, ou previsíveis, mas cujas consequências se tornam insuscetíveis de reparação, e são inevitáveis, decorrentes de forças da natureza, fora do controle razoável de uma parte e que impedem que ela cumpra suas obrigações sob um contrato, de modo a eximir que tal parte seja penalizada por isso.
De fato, há casos em que a crise desencadeada pela atual pandemia inviabiliza totalmente a manutenção de uma relação contratual, sem que haja culpa dos contratantes. Na Índia, por exemplo, o governo declarou que os desenvolvedores de projetos solares que não cumprem os prazos das obrigações contratuais por causa da interrupção da cadeia de suprimentos provocada pelo coronavírus podem invocar cláusulas de força maior para evitar multas financeiras.
Momento exige cautela
Porém, a avaliação de término unilateral e imediato de contratos com base nos efeitos da Covid-19 deve ser feita com cautela. Na presente situação, tem-se que considerar que a pandemia afeta e prejudica ambas as partes. Sendo assim, ainda que o término possa ser a melhor solução para uma das partes, a manutenção do contrato pode ser a chance de sobrevivência da outra.
Dessa forma, alegar força maior para terminar unilateral e imediatamente um contrato com fornecedor da sua rede de franquia pode, eventualmente, não ser a melhor alternativa, nem deve ser alegado em benefício exclusivo de uma das partes, em detrimento da outra, sem uma análise prévia da contratação.
Vale lembrar que o Código Civil prevê dois aspectos muito importantes que também devem ser considerados para a avaliação de término unilateral e imediato de contratos, neste momento de economia afetada pela pandemia: o princípio da função social do contrato e a equiparação de exercício abusivo de direito e ato ilícito.
O princípio da função social do contrato visa limitar a vontade das partes para proteger interesses da coletividade, que se sobrepõem a interesses particulares, como, por exemplo, a manutenção de empregos, a circulação de riquezas, a preservação da empresa etc.
Já o exercício abusivo de direito ocorre quando o titular de um direito, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Ao ser equiparado a ato ilícito, ele sujeita o praticante do ato a indenizar a parte prejudicada.
A observância desses aspectos é necessária para a avaliação de que medidas tomar com relação a contratos com os fornecedores da rede.
Muitas vezes, embora o Direito possa estar do lado da parte que pretende terminar o contrato, é preciso verificar se o exercício do direito de término, em circunstâncias que afetam ambas as partes, ainda que em graus diferentes, pode ser considerado excessivo e, portanto, abusivo.
Além disso, a busca por soluções alternativas ao término, nesse momento, pode ser uma demonstração de boa-fé e de busca ao cumprimento da função social do contrato, na medida em que ao se manter o contrato em vigor, permite-se circulação de riquezas e se contribui para manter o fornecedor ativo e em funcionamento.
Para se avaliar a oportunidade do término unilateral, neste momento, é cabível considerar alguns aspectos, tais como os listados a seguir, sem prejuízo de outros que se apliquem às particularidades de cada caso:
a essencialidade do contrato para a rede;
se o fornecimento deverá ser restabelecido quando a situação voltar à normalidade;
se existe a possiblidade de se considerar alternativas ao término, como, por exemplo, uma renegociação das condições do contrato e de valores;
se há risco de o término do contrato contribuir para o encerramento das atividades do fornecedor. Aqui vale ressaltar que a franqueadora não é nunca responsável pelas atividades do fornecedor, nem pelo seu sucesso ou insucesso. Ocorre que o momento atual é atípico, e a crise afeta ambas as partes. Seria importante, neste momento, avaliar se é possível fazer algo para manter o contrato em vigor e tentar contribuir para o bem social maior, que é a circulação de riquezas e o funcionamento da economia;
se há pagamento de valores fixos ou se serviços/produtos apenas são cobrados quando utilizados;
se o contrato envolve pequenos valores – cujo montante varia de empresa para empresa.
Assim, é necessário averiguar se a rescisão não prejudicará a continuidade do negócio pós-crise, uma vez que a recontratação do produto ou serviço pode gerar desgastes negociais, desembolsos com advogados e condições mais onerosas.
Por isso, vale considerar que o período é de instabilidade para todos, de modo que, nestes casos, se possível, é interessante tentar a negociação do contrato com os fornecedores da rede de franquia, em vez de sua extinção, solicitando a postergação de pagamentos, parcelamento de débitos, suspensão temporária dos serviços, descontos, dentre outras medidas que acomodem as expectativas de todos os envolvidos.
Se o término unilateral for efetivamente a única saída, em decorrência da pandemia como argumento de força maior, uma boa prática poderia ser conceder, sempre que possível, um prazo de aviso prévio, para que a outra parte pudesse se preparar. Se houver justa causa para o término unilateral por razões alheias à crise causada pela pandemia, elas podem ser invocadas para justificar o término, em vez de se fundamentar o término com a crise.
Por fim, como medida de prevenção, é importante que as empresas passem a revisar seus contratos-chave para avaliar o risco de violação contratual por elas e/ou suas contrapartes em decorrência de casos similares, visando minimizar os impactos causados por um evento como este que estamos vivendo.
*Flávia Amaral e Dayane Souza, advogadas, são sócias de Chiarottino e Nicoletti Advogados.