Por Carine Roos, fundadora e CEO da Newa*
Assim como muitas amigas que lutam há anos pela conscientização de gênero na sociedade, em organizações ou apoiando a sustentação de coletivos feministas, não fiquei surpresa com os novos dados da Síntese de Indicadores Sociais 2023, realizada pelo IBGE, que apontam que quase 7 milhões de mulheres não trabalharam em 2022, sendo 2,5 milhões para cuidar de parentes ou realizar tarefas domésticas. Destacando o recorte racial, 4,7 milhões de mulheres pretas ou pardas ainda estão no topo deste estudo, que, no geral, constatou que 10,8 milhões de jovens entre 15 e 29 anos não estavam no mercado de trabalho durante aquele período (é importante ressaltar que o estudo não contou com trabalhos informais). De modo geral, o que ainda percebe-se é que, são as mulheres que mais sentem o peso das tarefas domésticas e do cuidado com outras pessoas. Elas dedicam, em média, 21,3 horas semanais para isso, enquanto os homens despendem pouco mais da metade desse tempo (11,7 horas semanais).
Elas são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado, somando, diariamente, mais de 12 bilhões de horas gastas por mulheres e meninas em todo o mundo. O trabalho doméstico não remunerado representa 13% do PIB mundial. Esse trabalho gera 10,8 bilhões de dólares à economia do mundo e em reais chega a 50 trilhões reais – valor que é três vezes maior que o setor de tecnologia global, por exemplo – segundo dados da Oxfam Brasil de 2020.
Aproveitando que o tema tem tomado mais espaço e que no último ano eu tive a oportunidade de aprofundar os meus estudos de Gênero fazendo mestrado na London School of Economics and Political Science, onde cursei a disciplina “Economia Feminista”, trago alguns conceitos para refletirmos e caminhos possíveis para levar a efetiva justiça de gênero.
Contextualização
Os primeiros debates sobre trabalho doméstico aconteceram nas décadas de 1960 e 1970 nos EUA e Reino Unido. Os principais questionamentos eram que os lares domésticos eram também locais de produção. As principais questões na época levantadas foram: Quais são as condições e restrições do trabalho doméstico? Como o valor é determinado? Como se relaciona com a acumulação capitalista?
A discussão sobre a invisibilização do trabalho doméstico e não remunerado está centrada na divisão sexual do trabalho nas sociedades capitalistas, onde há a separação daquilo que é considerado ‘trabalho’, produtivo, remunerado, e aquilo que é considerado ‘não trabalho’, reprodutivo, não remunerado. A partir dessa divisão e a separação ideológica entre o trabalho dos homens realizado fora de casa e as atividades não mercantis realizadas em casa pelas mulheres que a invisibilização do trabalho não pago está localizada. Vale lembrar que antes da industrialização, no entanto, tanto o trabalho produtivo quanto o reprodutivo eram organizados quase que exclusivamente no nível familiar.
Então o trabalho passou a ser convencionalmente considerado bens e serviços comercializados. Já o trabalho reprodutivo, como explica a socióloga Evelyn Glenn, é o envolvimento do trabalho mental, emocional e manual organizado de inúmeros jeitos como dentro e fora do lar, remunerado e não remunerado, criando valor de troca ou uso de formas não mutuamente exclusivas. Entretanto, apenas o trabalho na esfera produtiva é considerado ‘valioso’ e recompensado com um salário, na esfera reprodutiva, não. Logo, podemos assumir que o trabalho reprodutivo é uma pré-condição para o capitalismo, pois necessita de uma força de trabalho qualificada e disposta.
Ainda, o que é consistente entre as sociedades capitalistas é que o trabalho reprodutivo é construído eminentemente por mulheres negras e étnicas. Portanto, o entendimento de que gênero e raça foram construídos e moldados socialmente pela sociedade do trabalho nos permite pensar como a maternidade e o trabalho doméstico são diferentes para mulheres brancas e negras.
Os homens acabam se beneficiando direta e indiretamente desse arranjo, principalmente os homens brancos que estão no topo da pirâmide social, conforme evidenciado no levantamento mencionado pelo IBGE no início do texto. Dos 7 milhões de jovens sem ocupação, apenas 1,5 milhão são homens brancos, e em sua grande maioria, a inatividade em 2022 foi ocasionada por questões de saúde e/ou falta de oportunidade local. Isso ocorre porque eles usufruem dos benefícios proporcionados pelas mulheres em casa e, indiretamente, têm mais energia para se dedicarem ao trabalho produtivo e alcançarem destaque nessa área. Portanto, há uma retroalimentação entre o trabalho reprodutivo realizado em casa e o trabalho produtivo realizado no mercado de trabalho. Nesse contexto, a socióloga Joan Acker ressalta que, para o trabalhador ideal estar ativo e produtivo, tanto a sexualidade quanto o trabalho de cuidado e as emoções são vistas como “perturbadoras” da ordem disciplinar e, portanto, devem ser excluídas da organização social do trabalho.
Os corpos das mulheres, sua sexualidade, sua capacidade de gerir uma vida, menstruar, amamentar, cuidar de seu bebê e se emocionarem são vistos como estigmas e utilizados como mecanismo de controle e exclusão.
A redução do papel do cuidado como agenda política liberal
Com o avanço do neoliberalismo e do enxugamento das políticas de bem estar social nas sociedades capitalistas, o conceito de reprodução social passa a ser central para entender a reprodução das desigualdades de gênero, sobretudo o aumento significativo do trabalho reprodutivo das mulheres e a ‘feminização do emprego’, isto é, a precarização da mão de obra, a flexibilização e a informalização do trabalho com um crescimento substancial do setor de serviços e do trabalho de cuidado.
Enquanto isso, o trabalho do cuidado passa a ser modificado, isto é, atividades como preparar alimentos em restaurantes, cuidar de pessoas com deficiência e idosos em asilos, cuidar de crianças em creches, apoio emocional em consultórios, passam a fazer parte de uma agenda liberal mais ampla.
Como argumenta a professora de economia Ipek İlkkaracan, quem goza do acesso a esses tipos de serviços é quem tem condições de pagar, impondo cada vez mais aos grupos sociais menos favorecidos a disponibilidade de tempo para cuidar e energia. Nesse sentido, a diminuição da capacidade e disposição da sociedade para cuidar de crianças, idosos, pessoas com deficiências, pessoas doentes, bem como nós mesmos, é fruto do sistema econômico e de uma agenda liberal. Desta forma, o emprego e a mobilidade laboral no setor dos cuidados respondem e criam novos mercados fazendo parte da expansão da mercantilização e privatização.
Por uma Economia Feminista
Diana Strassmann lembra: “Se quisermos medir e otimizar, como fazem os economistas, o bem-estar humano, devemos nos preocupar com o trabalho do cuidado porque a organização do trabalho do cuidado acaba interagindo com toda a economia e, portanto, se negligenciarmos esse trabalho, a análise não será rigorosa”.
Para compreender como a política e a teoria macroeconômicas têm sido abordadas a partir de uma perspectiva cega de gênero e como isso gera problemas econômicos particularmente ao afetar desproporcionalmente a vida das mulheres, os seus direitos e a justiça de gênero, é essencial compreender o conceito de macroeconomia. Emma Bürgisser argumenta que a política macroeconômica se baseia em decisões econômicas a nível nacional, centrando-se na compreensão de como o país arrecada dinheiro, quanto é arrecadado, por exemplo, através de impostos, e como escolhe gastar esse dinheiro. Em outras palavras, as políticas macroeconômicas visam objetivos amplos da economia como um todo, tendo como indicadores do bem-estar da sociedade ligados ao crescimento econômico, ao desemprego, à inflação e à balança de pagamentos. Diana Strassmann afirma que se quisermos medir e otimizar, como fazem os economistas, o bem-estar humano, devemos preocupar-nos com o trabalho de cuidado porque a organização do trabalho de cuidado acaba por interagir com toda a economia e, portanto, se negligenciarmos esse trabalho, a análise não será rigorosa. Desta forma, a perspectiva feminista apresenta uma abordagem radicalmente diferente da dos economistas neoclássicos. Estes partem da premissa de que os recursos são escassos, os desejos humanos são ilimitados e que as pessoas se comportam com o fim de maximizar os seus ganhos e alocar recursos para maximizar a utilidade.
Por outro lado, a perspectiva econômica feminista reconhece a interdependência nas relações humanas, o papel da cooperação, do altruísmo e das emoções como elementos cruciais da dimensão humana que se refletem na tomada de decisões. Além disso, o papel da produção e reprodução social, do trabalho remunerado e não remunerado e como as relações laborais são moldadas por gênero, raça e classe. Como argumenta Glenn, compreender como os eixos de raça e gênero moldaram o mercado de trabalho das mulheres é compreender como esses sistemas socialmente construídos se organizam em torno das desigualdades, sendo um contraponto às tendências universalizantes do pensamento feminista onde elas percebem o trabalho reprodutivo apenas como gênero. Uma economia que ignora metade da população e o trabalho não remunerado apresenta graves falhas correspondendo a um viés de gênero nas políticas macroeconômicas.
Como seria então uma política macroeconômica que considerasse as relações de poder, as desigualdades de gênero, raça e classe e o seu impacto na economia? Como seria se colocássemos a economia do cuidado no centro do desenvolvimento sustentável? Ou a análise de um PIB que efetivamente leva em conta o bem-estar humano? Para isso, precisaríamos de uma reforma radical do pensamento da economia onde o “homo-economicus” racional está definitivamente ultrapassado, onde as pessoas estão acima do lucro e são colocadas no centro das políticas, onde a economia do cuidado é vista como inegociável para uma sociedade inclusiva, sustentável e regenerativa. Uma reforma radical do pensamento econômico que não separa o “Eu”, o “Outro” e a “Natureza”.
*Mestre em Gênero pela London School of Economics and Political Science – LSE, Carine Roos é pós-graduada na Faculdade Israelista Albert Einstein em Cultivando Equilíbrio Emocional nas organizações e atua como especialista em Diversidade, Equidade e Inclusão há 10 anos. Lidera a Newa, empresa de impacto social que prepara organizações para um futuro mais inclusivo por meio de sensibilizações, workshops, treinamentos e consultoria de diversidade.