Por Alcione Pereira, fundadora e CEO da Connecting Food*
Nas últimas semanas, muita gente reparou em algumas supostas divergências entre os números relacionados à fome no Brasil divulgados em diferentes situações. Algumas notícias falam em mais de 30 milhões sem terem o que comer e 125 milhões com algum nível de insegurança alimentar; outras dizem que são “apenas” cerca de 10 milhões de brasileiros com fome. Estarão erradas as pessoas envolvidas nas declarações? Ou se equivocaram os órgãos que aferiram os números?
Esta é uma questão técnica, que não é – nem tem que ser – de domínio de todos, mas sentimos a necessidade de esclarecer, da forma mais acessível que encontramos, para que o maior número de pessoas consiga entender por quê uma hora vêm um número, outra hora vêm outro, mas que saibam que está tudo certo. Não há erros nos valores em si, mas no uso que se faz deles.
Um colegiado de especialistas – a Rede PENSSAN – realizou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar e concluiu que 33 milhões de pessoas passam fome e 125 milhões enfrentam algum nível de insegurança alimentar no Brasil. Essa pesquisa é baseada na EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar), que leva em consideração, em resumo, a quantidade de refeições que uma pessoa faz por dia e se ela tem preocupação em relação ao que vai comer no seu cotidiano.
Já a FAO divulga um balanço global sobre a fome no mundo, que não é aferido pelo mesmo questionário EBIA, mas considera um cálculo feito com base na produção local e global de alimentos, transformada em calorias, versus a população de cada região e também mundialmente. Por exemplo: se o Brasil produz X toneladas de alimentos e isso representa Y calorias, mas a quantidade de pessoas que vivem no nosso território precisa de 2Y para se alimentar minimamente, então, conclui-se que existe um gap. Ou se a produção é numericamente suficiente, mas não chega de forma efetiva a quem precisa (porque há muito desperdício, porque uma parte da população simplesmente não pode comprar a comida, por uma crise específica ou por outros motivos), também a conclusão é de que uma determinada parcela das pessoas “passa fome” ou, melhor dito, existe uma lacuna na cobertura de alimentos.
É por isso que os números da FAO são menores que os da PENSSAN, por uma questão metodológica. Não significa que um esteja mais correto do que o outro. São diferentes, pois consideram aspectos distintos e têm propósitos distintos. A FAO olha para a produção de alimentos no mundo, com o intuito de verificar se está sendo produzido o mínimo necessário e se todos têm acesso. Já a PENSANN vai no dia a dia de cada cidadão, para saber se consegue ou não ter as 3 refeições mínimas diárias.
Portanto, ambos os números são interessantes e importantes para quem trabalha com a realidade da insegurança alimentar. A questão é que devemos conhecê-los melhor e os seus diferentes propósitos, para conseguirmos usá-los de maneira efetiva naquilo que é verdadeiramente relevante: o combate ao desperdício e à fome.
* Engenheira de Alimentos, Mestre em Sustentabilidade pela Fundação Getúlio Vargas e MBA em Gestão Empresarial, Alcione Pereira é Fundadora da Connecting Food – uma foodtech de impacto social que trabalha na gestão inteligente de doação de alimentos excedentes. Além disso, ela é co-idealizadora do Movimento Todos à Mesa, primeira coalizão de empresas brasileiras unidas para a redução do desperdício de alimentos e combate à fome, atua como consultora técnica em projetos relacionados à cadeia de suprimentos humanitária, incluindo a redistribuição de alimentos oriundos do desperdício, para a FAO/ONU e Ministério da Cidadania.