Ponto crítico

Em Palhoça, município da Grande Florianópolis, um carro de som anuncia vagas para trabalhar numa indústria local. O que seria inusitado em outros tempos é hoje mais um indicador das dificuldades que o setor produtivo vem enfrentando para conseguir profissionais qualificados. O forte crescimento da economia brasileira na última década criou cerca de 18 milhões de novos empregos com carteira assinada. Ao mesmo tempo, escancarou ao máximo uma deficiência estrutural do País: a qualidade de nossa educação. Resolvemos um problema, o desemprego, mas ganhamos outro, a falta de trabalhadores qualificados para continuar crescendo.

“Precisa-se” virou um jargão do chão de fábrica ao ponto de venda. O problema é que precisa-se não só de força física, mas de pessoas preparadas para operar as novas tecnologias disponíveis. “O mundo do trabalho demanda pessoas que sabem pensar”, afirma o professor José Pastore, um dos maiores especialistas brasileiros em trabalho e recursos humanos. “As empresas precisam de pessoas com bom senso, lógica de raciocínio, capacidade de se comunicar, de escrever, de entender o que está escrito. E isso vem fundamentalmente da educação básica”, ressalta Pastore.

Eis o problema. Apenas 30% da população brasileira tem ensino médio completo. Nos Estados Unidos e na Alemanha, o percentual é de 90% e 80%, respectivamente. A situação não se restringe aos estados tradicionalmente considerados menos desenvolvidos. Em Santa Catarina, mais da metade dos 750 mil trabalhadores da indústria não tem escolaridade básica completa. “É um fator crítico para a nossa competitividade, mas que tem reflexos imediatos na renda do trabalhador”, afirma Glauco Côrte, presidente da Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc).

A situação se agrava porque muitos passaram pela escola, mas não aprenderam. De acordo com o Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf), divulgado em julho pelo Instituto Paulo Montenegro, 20% dos brasileiros entre 15 e 49 anos conseguem, no máximo, ler e compreender textos curtos e familiares e fazer operações matemáticas simples. Entre os estudantes do ensino superior, 38% não têm capacidade para interpretar e associar as informações em suas leituras. Para especialistas, esse é o resultado de uma política que priorizou o acesso ao ensino mas não exigiu a qualidade.

O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, apresentado pelo Ministério da Educação (MEC) em agosto, dá motivos para continuarmos preocupados: 39% dos municípios e 44,2% das escolas não atingiram as metas do MEC. Para Jairo Martins, superintendente da Fundação Nacional de Qualidade (FNQ), o problema é grave porque não há solução a curto prazo. “Precisamos começar agora para ter resultados daqui a dez anos. E temos que ter metas ousadas. A FNQ propõe uma mobilização nacional para a elaboração de um plano estratégico imune aos governos”, diz Martins.

A ineficiência histórica do ensino no Brasil criou disparates. Somos a sexta economia do mundo, mas a 46ª no ranking de produtividade. E as deficiências na educação básica trazem consequências para o ensino profissionalizante, outro gargalo enorme do Brasil. “As escolas profissionalizantes e as universidades têm o desafio de preencher a lacuna deixada pelo ensino anterior”, destaca Pastore. Em sondagem realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), 52% dos empresários reclamaram que têm dificuldades para capacitar seus funcionários por conta da má qualidade do ensino fundamental.

A pesquisa também apontou que 69% das empresas consultadas enfrentam dificuldades com a falta de trabalhador qualificado, o que inibe o aumento da competitividade. Não resta alternativa senão treinar o trabalhador: 78% das empresas que sofrem com a falta de trabalhador qualificado veem a capacitação na própria empresa como uma das principais formas de resolver o problema. “Sem dúvida, investimentos nos funcionários têm reflexos diretos no produto”, destaca Sérgio Arruda, diretor regional do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) em Santa Catarina.

Criado há 60 anos, o Senai já capacitou mais de 50 milhões de brasileiros. Por ano, são 2,3 milhões de matrículas. No ano passado, a entidade anunciou investimentos de R$ 1,5 bilhão até 2014 para a construção de 100 novas escolas, 100 novas unidades de ensino móveis, 22 institutos de inovação e 40 institutos de tecnologia. O Senai é também um dos principais executores do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), lançado no ano passado pelo governo federal com o objetivo de qualificar o trabalhador brasileiro.

A estratégia do governo inclui a expansão da chamada Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Em 2002 havia 140 escolas técnicas no País e um total de 160 mil vagas. A meta para o final de 2014 é chegar a 562 escolas e 600 mil vagas. Hoje são 354 unidades. Entre elas, o Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), que até 2006 tinha três campi e 3 mil alunos. Hoje são 21 campi (dois em implantação) e 18 mil estudantes. “Sempre fomos referência em educação profissional, mas atendíamos um número muito pequeno de alunos”, destaca a reitora Maria Clara Kascny Schneider.

Ex-aluno do IFSC, o tecnólogo Fábio Dias Pereira, de 23 anos, concluiu o curso superior em Mecatrônica Industrial já empregado. Analista de qualidade da Higie-Plus Cottonbaby, com sede em São José (SC), ele teve três promoções em pouco mais de um ano. Pereira conta que os convites de outras empresas são constantes, mas no momento prefere apostar na expansão da Cottonbaby. Responsável por atividades de treinamento, ele convive diariamente com o problema da falta de qualificação. “Estamos sempre com vagas abertas e treinando nossos colaboradores.”

Para preencher as vagas, muitas empresas têm diminuído o nível exigência nas contratações. É o caso da Álamo Engenharia, prestadora de serviços prediais e infraestrutura. “Compensamos com programas de treinamentos internos”, afirma Roberta Campello, que coordena a capacitação na Álamo. Neste ano, a empresa criou uma grade com 30 cursos para qualificar seus 1,5 mil funcionários. “Já percebemos a diminuição do turnover. Acreditamos que os colaboradores se sentem mais motivados e com disposição para os novos desafios apresentados”, explica Campello.

O caso da Álamo se contrapõe às empresas que relutam em investir em treinamento com medo de perder os funcionários capacitados. “Ninguém gosta de perder um colaborador depois de treiná-lo, mas não há outra opção”, afirma Hilton José da Veiga, diretor de recursos humanos da WEG, fabricante de motores elétricos, transformadores, geradores e tintas. A empresa tem 26 mil trabalhadores e é uma referência em treinamento. Desde 1968 mantém o Centroweg, escola que já formou 2,6 mil alunos, dos quais 49% permanecem na companhia (8% são gestores).

O Centroweg é uma escola de formação profissional que funciona numa das fábricas da WEG em Jaraguá do Sul (SC). São 20 laboratórios e seis salas de aula em 2.550 metros quadrados. Jovens entre 16 e 18 anos participam de um processo de seleção para entrar na escola, que tem aulas diárias, paralelas ao ensino médio. Durante o curso, os alunos recebem salário e têm praticamente todos os benefícios concedidos aos funcionários, inclusive participação nos lucros. Atualmente, são sete cursos de aprendizagem industrial, com um ou dois anos de duração.

Há dez anos na WEG, a funcionária Silvane Bressolin dos Santos tinha 14 anos quando passou no processo de seleção para aprendiz de eletrônica da Centroweg. “Eram 1.068 candidatos para 40 vagas. Até hoje guardo minha carta de aprovação, foi um mérito muito grande”, lembra Silvane. Para ela, os três anos que passou na escola foram fundamentais para o seu desenvolvimento profissional porque, além da formação técnica, aprendeu a ter disciplina e perseverança. Hoje, Silvane é chefe da seção de reparos e diz que está pronta para novos desafios na empresa.

O colega Rodrigo Lux, 22 anos, trocou o emprego numa empresa de vestuário pela WEG justamente pela oportunidade de aprender. Ele fez o curso de aprendiz do programa de Qualificação Profissional de Operadores de Produção (QPOP). “Neste programa contratamos jovens de até 24 anos só para estudar. Eles podem inclusive continuar trabalhando em suas empresas. Ao final do curso, de 400 horas, convidamos os alunos a serem funcionários da empresa: 83% ficam”, conta Veiga. Lux foi um deles e em pouco mais de um ano foi promovido a distribuidor de materiais.

Os programas de treinamento da WEG fazem parte da estratégia da empresa para atingir as metas do plano 2020: chegar ao ano 2020 com um faturamento de R$ 20 bilhões e 50 mil trabalhadores. “Precisamos preparar e reter”, resume Veiga. A empresa investe por ano cerca de R$ 10 milhões em treinamentos, 0,2% da receita operacional líquida. Com metas ambiciosas e atuação consolidada no mercado internacional, a WEG também sofre as dificuldades da escassez de mão de obra qualificada, mas segue o que para o professor José Pastore precisa ser assimilado urgentemente. “As máquinas já são acessíveis para todos. O que faz a diferença é quem está por trás delas.”

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